O PESSOAL É
POLÍTICO
A crítica feminista à beleza começa pelo entendimento
de que o pessoal é político. Enquanto feministas liberais tendem a enxergar a esfera
da vida “privada” como uma área na qual mulheres podem exercer o poder de
escolha livre da política, feministas radicais como Dworkin e MacKinnon
procuram romper a distinção público/privado a qual, elas argumentam, é
fundamental à supremacia masculina. Essa distinção dá aos homens um mundo
privado de dominação masculina no qual eles podem encarcerar energias
emocionais, de trabalho doméstico, sexuais e reprodutivas das mulheres enquanto
escondem as relações feudais de poder dessa esfera sob o escudo de proteção da
“privacidade”. O mundo privado é defendido pelo ponto de vista da dominação
masculina como o do “amor” e realização individual que não deve ser maculado
pela análise política. É um mundo no qual mulheres simplesmente “escolhem”
colocar suas energias e corpos à disposição dos homens, onde elas permanecem,
apesar de qualquer violência ou abuso. A natureza “privada” deste mundo
protegeu os homens de punição por um longo tempo pois ele era visto como fora da
lei que se aplica apenas no mundo público. Assim, o estupro no casamento não
era um crime segundo essa visão, e violência doméstica era apenas uma
controvérsia pessoal.
Críticas feministas radicais argumentam que, pelo
contrário, o “pessoal”; isto é, os comportamentos desse mundo “privado”, era, na verdade, “político”. Reconhecer o “pessoal como político” permitiu que mulheres
identificassem, através de grupos de conscientização e troca de experiências,
que o que elas consideravam ser suas próprias falhas pessoais, como odiar suas
barrigas gordas ou fingir dor de cabeça quando queriam evitar intercurso sexual
sem que seu parceiro ficasse com raiva, não eram apenas experiências
individuais. Eram experiências comuns entre mulheres, construídas a partir das
relações desiguais de poder do chamado mundo “privado”, e muito políticas na
verdade. O mundo “privado” foi reconhecido como base do poder que os homens
exibiam no mundo “público” do trabalho e do governo. O poder público e
realizações dos homens, seu status de cidadania (Lister, 1997), dependiam dos
serviços que recebiam das mulheres em casa. As mulheres não apenas forneciam
esse pano de fundo vital à dominância masculina como não contavam com uma
classe de pessoas que fizessem o mesmo por elas, dessa forma elas estavam em
dupla desvantagem na esfera pública em comparação com os homens. O conceito de
que o pessoal é político permitiu que as feministas entendessem as formas pelas
quais os mecanismos de dominância masculina penetravam em suas relações com
homens. Elas puderam reconhecer como a dinâmica de poder da dominância
masculina transformou a heterossexualidade em uma instituição política (Rich,
1993), construiu a sexualidade masculina e feminina (Jeffreys, 1990; Holland et al., 1998) e os sentimentos das
mulheres sobre seus corpos e sobre elas mesmas (Bordo, 1993).
“NOVO”
FEMINISMO
O feminismo radical, que identificou os mecanismos de
dominância masculina nas vidas de mulheres, sempre foi antagonizado por
variedades do feminismo que buscavam privatizar e despolitizar a sexualidade e
as práticas de beleza. Nos anos 80, por exemplo, havia um movimento para isolar a sexualidade da crítica feminista
radical tanto por feministas “liberais” como por feministas socialistas (Vance,
1984). Nos anos 90 houve uma onda de publicações de editoras mainstream, que não estavam tão
entusiasmadas para publicar trabalhos feministas radicais, de livros que diziam
incorporar um feminismo “novo”, “poderoso” ou “sexy” (Wolf, 1993; Roiphe, 1993). Esses livros
tinham em comum o repúdio furioso ao feminismo radical e à noção de que o
pessoal era político. Eles buscavam a despolitização radical do sexo e da vida
“pessoal”. O “novo” feminismo argumentava que as mulheres haviam atingido
enormes avanços no final do século XX em direção a oportunidades iguais as dos
homens no mundo público do trabalho. Esse “novo” feminismo foi influenciado
pelo individualismo liberal americano radical como mostra um livro de 1986 que
argumentava que a “justiça de gênero” somente poderia ser atingida
completamente através da facilitação das escolhas das mulheres com a remoção de
barreiras para que “indivíduos tivessem a oportunidade de escolher” (Krip et al., 1986, p. 133). No “novo”
feminismo as vidas privadas das mulheres eram simplesmente o resultado da
“escolha” e deveriam estar fora dos limites da análise ou ação feminista.
Um exemplo britânico dessas “novas” feministas é
Natasha Walter. Ela explica que pode aprender com “ícones culturais” como
Madonna sobre a independência e a sexualidade das mulheres. A contribuição de
Madonna na criação de um novo e sexualizado feminismo coberto por costumes e
práticas da pornografia será discutida mais adiante. O “novo feminismo” de
Walter é baseado na firme reafirmação da linha entre o pessoal e o político. O
pessoal, que deveria ser isento da crítica política, cobriu “vestido e
pornografia”. O problema com o feminismo, ela diz, é que ele “buscou direcionar
nossas vidas pessoais em todos os níveis” (Walter, 1999, p. 4) e esse “novo
feminismo deve desfazer a estreita ligação que o feminismo nos anos 70 fez entre
nossas vidas pessoais e políticas” (p. 4). Mulheres estavam agora livres em
suas vidas pessoais pois “A maioria das mulheres se sente livre, mais livre do que suas mães se sentiam. A maioria das mulheres pode escolher o que vestir,
com quem passar sua vida, onde trabalhar, o que ler, quando ter filhos”
(1999, p. 10). Ela concorda com Naomi Wolf (1993) que o que as mulheres
realmente precisam é o “poder” que vem quando elas ganham mais. Quando elas
tiverem “poder” elas irão aparentemente manter o desejo de “passar o tempo
depilando suas pernas ou pintando as unhas” (Walter, 1999, p. 86) mas as
feministas se sentirão mais “relaxadas” quanto a isso. Mulheres vão poder
tolerar a “real, muitas vezes perversamente agradável relação que elas tem com
suas roupas e seus corpos” sem que sejam obrigadas a se sentirem culpadas pelo
feminismo puritano (p. 86). Em relação a beleza, Walter tem uma visão similar a
dos libertários americanos acima, “Respeito pela escolha individual, embora
suas origens sejam misteriosas, é uma condição necessária à justiça social”
(Krip et al., 1986, p. 15). Em outras
palavras o contexto no qual as “escolhas” são feitas é menos importante do que
a oportunidade de explorá-las. Evitar a interrogação racional sobre o mistério
de tais “escolhas” e prazeres ao qual a maioria dos homens parece ser impune, e
o que elas podem significar para as vidas das mulheres, transforma as práticas
de beleza em um aspecto do mundo natural além do interesse político.
O equivalente americano a esse tipo de feminismo
liberal é The Lipstick Proviso (A condição do batom) (1997), de Karen Lehrman, que argumenta que maquiagem é totalmente compatível
com feminismo. Lehrman considera que houve um retorno à feminilidade nos
Estados Unidos, tal que “Nos anos recentes muitas mulheres também retornaram a
práticas que foram pensadas para subsidiar a opressão masculina. Elas estão
vestindo roupas provocativas e saltos altos novamente, pintando seus rostos e
unhas, tratando sua pele e cabelos de acordo com os mais recentes estilos e
novidades” (1997, p. 8). Feministas, ela diz, precisam aprender a respeitar as
escolhas das mulheres – de vestir sensuais vestidos Galliano a permanecer em
casa para criar seus filhos” (1997, p. 13). Ela culpa a falha das mulheres em
exercitar seu poder pessoal por sua opressão. Mulheres deveriam parar de se
autodestruir e parar de “se fazer de vítimas” (p. 41). Beleza, ela diz, é “uma
realidade, um presente de Deus, da natureza ou de um gênio que, em certa
medida, transcende a cultura e a história” (p. 68). Alinhada a sexólogos e
sociobiólogos tradicionais ela argumenta que mulheres e homens merecem a beleza
porque ela é necessária à reprodução. Mulheres querem ser escolhidas, e homens
são programados para escolher mulheres “lindas”. Lehrman sugere que “beleza”,
em forma de sensualidade, dá às mulheres poder que elas podem usar para
progredir. O poder deriva de “vestir roupas sensuais”. As mulheres “se enfeitam”
ela diz, “porque a sexualidade é uma forma de poder, uma força, um recurso... A
diferença agora é que ela não é o único poder das mulheres” (1997, p. 94).
Mulheres não são, ela afirma, “vitimizadas por dietas, exercício, modelos de
beleza, designers de moda, saltos altos, maquiagem, elogios” (p. 23). O
problema para as mulheres, surpreendentemente, é que há uma intromissão na
santidade de suas vidas pessoais, não apenas pelo governo mas por algo chamado “sociedade”
que “inclui as teóricas feministas” (p.23).
O livro The
Survival of the Prettiest (A sobrevivência das mais bonitas)(2000) de Nancy Etcoff, expressa sentimentos
quase idênticos. A beleza é inevitável e universal, um “instinto básico”
(Etcoff, 2000, p. 7). Etcoff tem um cruel diagnóstico para aqueles, como as
críticas feministas da beleza, que falham em responder a “beleza física”. Essa
falta de resposta é “um sinal de intensa depressão” (2000, p. 8). Homens
inevitavelmente respondem a “jovens atraentes” por causa de um “imperativo
reprodutivo”. Ela concorda com Lehrman que mulheres podem atingir “poder”
através de práticas de beleza porque “é possível que mulheres possam cultivar a
beleza e usar a indústria da beleza para otimizar o poder que a beleza traz,
não?” (Etcoff, p. 4). Essas feministas liberais não reconhecem as forças que
restringem e podem até eliminar o poder de escolha das mulheres. Elas não
consideram as limitações do “prazer” e do “poder” que as práticas de beleza
oferecem, ou as maneiras com as quais contribuem para a condição de
subordinação das mulheres. Assim elas podem proteger a permanência da
objetificação sexual de mulheres na cultura.
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