terça-feira, 28 de junho de 2016

[CAPÍTULO 1, PARTE 2] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

O PESSOAL É POLÍTICO
     A crítica feminista à beleza começa pelo entendimento de que o pessoal é político. Enquanto feministas liberais tendem a enxergar a esfera da vida “privada” como uma área na qual mulheres podem exercer o poder de escolha livre da política, feministas radicais como Dworkin e MacKinnon procuram romper a distinção público/privado a qual, elas argumentam, é fundamental à supremacia masculina. Essa distinção dá aos homens um mundo privado de dominação masculina no qual eles podem encarcerar energias emocionais, de trabalho doméstico, sexuais e reprodutivas das mulheres enquanto escondem as relações feudais de poder dessa esfera sob o escudo de proteção da “privacidade”. O mundo privado é defendido pelo ponto de vista da dominação masculina como o do “amor” e realização individual que não deve ser maculado pela análise política. É um mundo no qual mulheres simplesmente “escolhem” colocar suas energias e corpos à disposição dos homens, onde elas permanecem, apesar de qualquer violência ou abuso. A natureza “privada” deste mundo protegeu os homens de punição por um longo tempo pois ele era visto como fora da lei que se aplica apenas no mundo público. Assim, o estupro no casamento não era um crime segundo essa visão, e violência doméstica era apenas uma controvérsia pessoal.
     Críticas feministas radicais argumentam que, pelo contrário, o “pessoal”; isto é, os comportamentos desse mundo “privado”, era, na verdade, “político”. Reconhecer o “pessoal como político” permitiu que mulheres identificassem, através de grupos de conscientização e troca de experiências, que o que elas consideravam ser suas próprias falhas pessoais, como odiar suas barrigas gordas ou fingir dor de cabeça quando queriam evitar intercurso sexual sem que seu parceiro ficasse com raiva, não eram apenas experiências individuais. Eram experiências comuns entre mulheres, construídas a partir das relações desiguais de poder do chamado mundo “privado”, e muito políticas na verdade. O mundo “privado” foi reconhecido como base do poder que os homens exibiam no mundo “público” do trabalho e do governo. O poder público e realizações dos homens, seu status de cidadania (Lister, 1997), dependiam dos serviços que recebiam das mulheres em casa. As mulheres não apenas forneciam esse pano de fundo vital à dominância masculina como não contavam com uma classe de pessoas que fizessem o mesmo por elas, dessa forma elas estavam em dupla desvantagem na esfera pública em comparação com os homens. O conceito de que o pessoal é político permitiu que as feministas entendessem as formas pelas quais os mecanismos de dominância masculina penetravam em suas relações com homens. Elas puderam reconhecer como a dinâmica de poder da dominância masculina transformou a heterossexualidade em uma instituição política (Rich, 1993), construiu a sexualidade masculina e feminina (Jeffreys, 1990; Holland et al., 1998) e os sentimentos das mulheres sobre seus corpos e sobre elas mesmas (Bordo, 1993).

“NOVO” FEMINISMO

     O feminismo radical, que identificou os mecanismos de dominância masculina nas vidas de mulheres, sempre foi antagonizado por variedades do feminismo que buscavam privatizar e despolitizar a sexualidade e as práticas de beleza. Nos anos 80, por exemplo, havia um movimento para  isolar a sexualidade da crítica feminista radical tanto por feministas “liberais” como por feministas socialistas (Vance, 1984). Nos anos 90 houve uma onda de publicações de editoras mainstream, que não estavam tão entusiasmadas para publicar trabalhos feministas radicais, de livros que diziam incorporar um feminismo “novo”, “poderoso” ou “sexy”  (Wolf, 1993; Roiphe, 1993). Esses livros tinham em comum o repúdio furioso ao feminismo radical e à noção de que o pessoal era político. Eles buscavam a despolitização radical do sexo e da vida “pessoal”. O “novo” feminismo argumentava que as mulheres haviam atingido enormes avanços no final do século XX em direção a oportunidades iguais as dos homens no mundo público do trabalho. Esse “novo” feminismo foi influenciado pelo individualismo liberal americano radical como mostra um livro de 1986 que argumentava que a “justiça de gênero” somente poderia ser atingida completamente através da facilitação das escolhas das mulheres com a remoção de barreiras para que “indivíduos tivessem a oportunidade de escolher” (Krip et al., 1986, p. 133). No “novo” feminismo as vidas privadas das mulheres eram simplesmente o resultado da “escolha” e deveriam estar fora dos limites da análise ou ação feminista.
     Um exemplo britânico dessas “novas” feministas é Natasha Walter. Ela explica que pode aprender com “ícones culturais” como Madonna sobre a independência e a sexualidade das mulheres. A contribuição de Madonna na criação de um novo e sexualizado feminismo coberto por costumes e práticas da pornografia será discutida mais adiante. O “novo feminismo” de Walter é baseado na firme reafirmação da linha entre o pessoal e o político. O pessoal, que deveria ser isento da crítica política, cobriu “vestido e pornografia”. O problema com o feminismo, ela diz, é que ele “buscou direcionar nossas vidas pessoais em todos os níveis” (Walter, 1999, p. 4) e esse “novo feminismo deve desfazer a estreita ligação que o feminismo nos anos 70 fez entre nossas vidas pessoais e políticas” (p. 4). Mulheres estavam agora livres em suas vidas pessoais pois “A maioria das mulheres se sente livre, mais livre do que suas mães se sentiam. A maioria das mulheres pode escolher o que vestir, com quem passar sua vida, onde trabalhar, o que ler, quando ter filhos” (1999, p. 10). Ela concorda com Naomi Wolf (1993) que o que as mulheres realmente precisam é o “poder” que vem quando elas ganham mais. Quando elas tiverem “poder” elas irão aparentemente manter o desejo de “passar o tempo depilando suas pernas ou pintando as unhas” (Walter, 1999, p. 86) mas as feministas se sentirão mais “relaxadas” quanto a isso. Mulheres vão poder tolerar a “real, muitas vezes perversamente agradável relação que elas tem com suas roupas e seus corpos” sem que sejam obrigadas a se sentirem culpadas pelo feminismo puritano (p. 86). Em relação a beleza, Walter tem uma visão similar a dos libertários americanos acima, “Respeito pela escolha individual, embora suas origens sejam misteriosas, é uma condição necessária à justiça social” (Krip et al., 1986, p. 15). Em outras palavras o contexto no qual as “escolhas” são feitas é menos importante do que a oportunidade de explorá-las. Evitar a interrogação racional sobre o mistério de tais “escolhas” e prazeres ao qual a maioria dos homens parece ser impune, e o que elas podem significar para as vidas das mulheres, transforma as práticas de beleza em um aspecto do mundo natural além do interesse político.
     O equivalente americano a esse tipo de feminismo liberal é The Lipstick Proviso (A condição do batom) (1997), de Karen Lehrman, que argumenta que maquiagem é totalmente compatível com feminismo. Lehrman considera que houve um retorno à feminilidade nos Estados Unidos, tal que “Nos anos recentes muitas mulheres também retornaram a práticas que foram pensadas para subsidiar a opressão masculina. Elas estão vestindo roupas provocativas e saltos altos novamente, pintando seus rostos e unhas, tratando sua pele e cabelos de acordo com os mais recentes estilos e novidades” (1997, p. 8). Feministas, ela diz, precisam aprender a respeitar as escolhas das mulheres – de vestir sensuais vestidos Galliano a permanecer em casa para criar seus filhos” (1997, p. 13). Ela culpa a falha das mulheres em exercitar seu poder pessoal por sua opressão. Mulheres deveriam parar de se autodestruir e parar de se fazer de vítimas (p. 41). Beleza, ela diz, é “uma realidade, um presente de Deus, da natureza ou de um gênio que, em certa medida, transcende a cultura e a história” (p. 68). Alinhada a sexólogos e sociobiólogos tradicionais ela argumenta que mulheres e homens merecem a beleza porque ela é necessária à reprodução. Mulheres querem ser escolhidas, e homens são programados para escolher mulheres “lindas”. Lehrman sugere que “beleza”, em forma de sensualidade, dá às mulheres poder que elas podem usar para progredir. O poder deriva de “vestir roupas sensuais”. As mulheres “se enfeitam” ela diz, “porque a sexualidade é uma forma de poder, uma força, um recurso... A diferença agora é que ela não é o único poder das mulheres” (1997, p. 94). Mulheres não são, ela afirma, “vitimizadas por dietas, exercício, modelos de beleza, designers de moda, saltos altos, maquiagem, elogios” (p. 23). O problema para as mulheres, surpreendentemente, é que há uma intromissão na santidade de suas vidas pessoais, não apenas pelo governo mas por algo chamado “sociedade” que “inclui as teóricas feministas” (p.23).

     O livro The Survival of the Prettiest (A sobrevivência das mais bonitas)(2000) de Nancy Etcoff, expressa sentimentos quase idênticos. A beleza é inevitável e universal, um “instinto básico” (Etcoff, 2000, p. 7). Etcoff tem um cruel diagnóstico para aqueles, como as críticas feministas da beleza, que falham em responder a “beleza física”. Essa falta de resposta é “um sinal de intensa depressão” (2000, p. 8). Homens inevitavelmente respondem a “jovens atraentes” por causa de um “imperativo reprodutivo”. Ela concorda com Lehrman que mulheres podem atingir “poder” através de práticas de beleza porque “é possível que mulheres possam cultivar a beleza e usar a indústria da beleza para otimizar o poder que a beleza traz, não?” (Etcoff, p. 4). Essas feministas liberais não reconhecem as forças que restringem e podem até eliminar o poder de escolha das mulheres. Elas não consideram as limitações do “prazer” e do “poder” que as práticas de beleza oferecem, ou as maneiras com as quais contribuem para a condição de subordinação das mulheres. Assim elas podem proteger a permanência da objetificação sexual de mulheres na cultura.

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