segunda-feira, 28 de novembro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 4] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

IMPERIALISMO CULTURAL OCIDENTAL – EXPORTANDO PRÁTICAS DANOSAS PARA O NÃO OCIDENTE

      Mulheres no Afeganistão supostamente recentemente libertas da regra do Talibã, estão presas na dualidade patriarcal de virgem/vadia por terem sido apresentadas a apenas duas escolhas de aparência, cobrir-se com a burca ou usar maquiagem. Práticas de beleza ocidentais são vistas como tão obviamente naturais, inevitáveis e boas para mulheres que têm sido mantidas como o melhor para mulheres do Afeganistão. Após anos de terrível opressão nos quais elas eram permitidas fora de casa apenas se usassem a burca que cobre o corpo inteiro, viajavam apenas na companhia de homens, eram privadas de educação e emprego e poderiam apanhar nas ruas por guardiões homens da integridade islâmica sem direito a reparação, poder envolver-se em práticas de beleza ocidentais, especialmente para rosto e cabelo, não parece uma necessidade urgente. Contudo é dessa forma que tais práticas estão sendo promovidas.
     A indústria de beleza americana avançou em 2002 em consequência da guerra para se infiltrar no Afeganistão sob o disfarce de um “auxílio” de beleza urgentemente necessitado. Isso foi representado na mídia ocidental como uma ajuda positiva ao invés de imperialismo cultural americano e empreendimento capitalista. Foi oferecido a mulheres o papel de cobrir-se com maquiagem e ser sexualmente objetificada, ao invés de cobrir-se com a burca para prevenir que fossem vistas como objetos sexuais por homens. A perspectiva do New York Times sobre isso é que apesar de duas décadas de guerra “Mulheres afegãs mantiveram seu desejo de parecer lindas, mas existe uma “lamentável escassez de esteticistas. Além disso, elas não têm ninguém para ensiná-las e nenhum lugar onde podem ter acesso a um pente decente, ainda mais à coleção de géis, cremes, pós, delineadores e cores que transbordam das prateleiras de qualquer drogaria americana” (Halbfinger, 2002,  p. 1). Em resposta a essa oportunidade de mercado, e à oportunidade de mostrar suas companhias lidando com um socorro emergencial, a maioral da indústria de beleza americana logo “correu ao resgate” liderada pela editora da Vogue. O resultado dessa generosidade foi que uma escola que ensinaria práticas de beleza estava para abrir em acordo com o Ministério Afegão de Assuntos Femininos, como se práticas de beleza fossem de fato uma questão crucial de direitos humanos para mulheres, junto com educação, segurança e trabalho.
     Os fabricantes de produtos de beleza americanos ofereceram manuais e mercadorias para auxiliar a empreitada. A editora da Vogue, Anna Wintour, disse que a indústria da beleza é “incrivelmente filantrópica” e que a escola de beleza “não apenas ajudaria mulheres do Afeganistão a ser e sentirem-se melhor mas também as empregaria”. Aparentemente a situação nos 20 salões de beleza que reabriram após a remoção do controle do Talibã constituem uma crise de saúde porque as condições eram insalubres e perigosas. Como uma emigrante afegã que viu a situação reportou:
      Elas estão usando tesouras enferrujadas, têm um pente barato para o salão inteiro e não o limpam, não há água corrente ou creme de barbear, e existe um problema real com piolhos. Elas usam varas de madeira e elásticos para fazer permanentes. E não há algodão,  de modo que a solução de permanente escorre pelo rosto da cliente.

(Halbfinger, 2002, p. 1)
      Permanente capilar poderia ser considerada uma prática cultural danosa por si só dado que a química envolvida é tóxica independente de escorrer pelo rosto (Erickson, 2002), mas nos interesses do capitalismo transformou-se em uma demanda de direitos humanos. Simplesmente traduzir manuais educacionais de beleza não era suficiente no Afeganistão porque muitas mulheres eram analfabetas, então um curso em vídeo de instruções de maquiagem estava sendo preparado.
      Apesar de as corporações de cosméticos lutarem entre si para fazer doações à escola de beleza em um almoço da Vogue foi dito que não estavam competindo por vendas, um executivo disse que “a escola de beleza não pode ser julgada um sucesso se não criar uma demanda por cosméticos americanos assim que possível” (Halbfinger, 2002, p. 1). Não foi apenas no Afeganistão que corporações de cosméticos dos Estados Unidos viram uma oportunidade de mercado. Eles rapidamente entraram na União Soviética após a queda do regime comunista para oferecer seus serviços para mulheres antes em privação, e estão alcançando a China também. Como a historiadora dos negócios Kathy Peiss coloca, até mesmo nas “Florestas tropicais da Amazônia, mulheres vendem Avon, Mary Kay e outros produtos de beleza” (Peiss, 2001, p. 20). Mas Peiss, como muitos dos envolvidos em vender ideais de beleza ocidentais no Afeganistão, esconde a opressão dessa atividade colonizadora ao enfatizar que ela fornece empregos para mulheres que precisam muito deles. Como ela diz, “como foi o caso há cem anos nos Estados Unidos, esses ‘micronegócios’ deram a algumas mulheres um apoio na economia de mercado em desenvolvimento” (Peiss, 2001, p. 20).

COBRINDO MULHERES NA RELIGIÃO PATRIARCAL

      Apesar de a objetificação sexual requerida das mulheres no ocidente poder ser distinta do ato de se cobrir exigido por regimes islâmicos, é instrutivo considerar a base cultural idêntica a partir da qual tanto a cultura ocidental quanto a islâmica se desenvolveram. Cobrir as cabeças de mulheres é uma prática cultural de tribos do oriente médio que encontraram caminhos, via religiões monoteístas originárias daquela região, para outras partes do mundo. Cobrir as cabeças e os corpos era imposto sobre algumas mulheres cristãs no ocidente até pouco tempo atrás. Em minha infância em Malta nos anos 1950, onde meu pai foi colocado pelo exército, eu lembro dos avisos em ônibus que instruíam mulheres a “usar vestido Marylike”. Ainda era obrigatório que mulheres que entrassem em igrejas em muitas partes da Europa cobrindo suas cabeças. A religião cristã, como o islã, e a outra religião patriarcal monoteísta, o judaísmo, tem suas raízes em culturas patriarcais antigas que existiam no oriente médio. Nessas culturas antigas, era exigido que mulheres respeitáveis se cobrissem como no código babilônico de Hamurabi. Gerda Lerner explica em The Creation of Patriarchy, que o código, que precede as três religiões, exigia que mulheres que não eram prostitutas se cobrissem para indicar que eram propriedade de homens individuais (Lerner, 1987). As mulheres prostituídas, geralmente escravas, não se cobriam para indicar que eram propriedade de homens em geral.
      No início da cristandade um código similar foi imposto. Dessa forma, na carta de Paulo aos Coríntios no Novo Testamento ele define a regra. Ele explica que “a cabeça de todo homem é Cristo; e a cabeça da mulher é o homem; e a cabeça de Cristo é Deus”. Isso pode ser demonstrado através de cobrir a cabeça desta forma:
      Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua própria cabeça. Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu. O varão pois não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do varão. Porque o varão não provém da mulher, mas a mulher do varão. Porque também o varão não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do varão. 

(Coríntios, 1957, 11: 3-15, p. 181)
      A cobertura da cabeça da mulher poderia mostrar que ela era propriedade do homem. Outras práticas danosas da cristandade antiga acompanharam o código de vestimenta. Mulheres não podiam falar na igreja, mas podiam perguntar a seus maridos sobre qualquer coisa que não entendessem quando chegassem em casa e eram obrigadas a “submeter-se a seus próprios maridos, como a Deus” (Efésios, 1957, 5: 22, p. 200).
      Um ramo da religião cristã hoje vai além de simplesmente cobrir mulheres. Mulheres estão de fato excluídas de todo o Monte Athos na Grécia, coberto por monastérios ortodoxos, para que os monges estejam protegidos de ter que vê-las. Em 2002 essa prática cristã antiga recebeu apoio influente pela visita, divulgada na mídia, do Príncipe Charles a um monastério na montanha (Smith, 2004). A montanha tem excluído mulheres desde o século XI e com o status de uma república teocrática independente pode impor penalidades legais a quem desafiar o banimento. Charles visitou o lugar diversas vezes desde  morte de sua ex esposa, Diana, e é dito que ganha ótimo consolo de seu refúgio, um lugar onde as leituras no refeitório “são frequentemente baseadas no (...) mal causado pelas mulheres com a queda de Eva” (Smith, 2004, p. 3). A contínua existência dessa zona de exclusão apesar de tentativas da União Europeia de revogar o banimento é um lembrete dos valores misóginos que estão na base do cristianismo patriarcal.

O QUE CONSTITUI UMA PRÁTICA CULTURAL DANOSA?

      Eu sugeri neste capítulo que tanto as culturas ocidentais influenciadas pelo cristianismo quanto as influenciadas pelo islã reforçam práticas culturais danosas sobre mulheres. Apenas uma determinação para ignorar as origens políticas, funções e consequências das práticas de beleza ocidentais permitiriam a crença de que a cultura ocidental é claramente superior nas liberdades dadas a mulheres em relação à aparência. Considerando que todas as três culturas religiosas patriarcais originadas no antigo oriente médio começaram forçando mulheres a se cobrir, isso mudou no ocidente para a aparentemente muito diferente prescrição para mulheres exercerem seu papel sexual em espaços públicos. Em algumas áreas do oriente médio e da Ásia onde cobrir-se foi uma regra desafiada ou está morrendo existe uma reforço renovado da regra. O resultado final é uma aparentemente divergência cada vez maior entre as regras de aparência para mulheres no oriente e no ocidente. Ambos os conjuntos de regras de aparência, entretanto, requerem que mulheres devam ser “diferentes/deferentes”, e ambos exigem que elas sirvam as necessidades sexuais dos homens, seja fornecendo excitação sexual ou escondendo os corpos femininos para que homens não fiquem excitados. Em ambos os casos, é exigido que mulheres satisfaçam as necessidades masculinas em espaços públicos e não tenham as liberdades que homens possuem.
      O conceito de práticas culturais danosas em relação à aparência, portanto, não é restrito a culturas não ocidentais. Todas as práticas culturais ocidentais consideradas neste livro, de maquiagem a labioplastia, se encaixam no critério para identificação de práticas culturais danosas. Eu argumento que elas criam papéis estereotipados para os sexos, são originadas da subordinação da mulher e são para benefício dos homens e justificadas por tradição. É certamente possível argumentar, como demonstro no capítulo 6 sobre maquiagem, que mesmo práticas que aparentam ter menos efeito na saúde de mulheres e meninas, como o uso de batom, podem ser prejudiciais. Apesar de práticas de beleza ocidentais serem raramente forçadas por violência física, elas são todas culturalmente reforçadas. Falhar em usar maquiagem e em depilar as pernas e axilas pode não ser “suicídio social” em culturas ocidentais mas irá, como sugiro no capítulo sobre maquiagem, afetar a habilidade de mulheres em conseguir e manter emprego e nível de influência social. Era exigido que as mulheres do parlamento britânico que mencionei usassem roupas femininas e que mostrassem as pernas se quisessem ter qualquer legitimidade na legislatura e era improvável que sobrevivessem se permitissem que os pelos das axilas aparecessem nas blusas ou que pelos das pernas aparecessem em suas coxas.
      Entretanto estou consciente de que o grau de dano inflingido por práticas como cirurgia cosmética e uso de batom  não é igual. A implicação de reconhecer práticas de beleza ocidentais como práticas culturais danosas é que os governos irão, como requerido pela Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulheres, precisar alterar as atitudes sociais que os baseiam. Em caso de algumas práticas de cirurgia cosmética as consequências são suficientemente severas e a regulação tão facilmente efetuada por penalidades legais sobre praticantes médicos que poderiam ser terminadas através de meios legais. O uso de batom e a depilação, entretanto, não devem ser consideradas práticas isentas de ser consideradas danosas e requerem medidas, apesar de medidas legais não serem apropriadas. Elas marcam mulheres como subordinadas e claramente demonstram os papéis estereotipados dos sexos mesmo não sendo tão severas em seu impacto na saúde das mulheres. O papel dos governos comprometidos com o fim de tais práticas, ou mesmo o simples alívio do impacto da exigência culturais que devem cumprir, deve portanto ser de combater a criação de diferença sexual, em ideias e atitudes, práticas de negócios, que inscrevem essa noção na fundação da cultura ocidental.
      Em capítulos posteriores eu examino as práticas de maquiagem, salto alto e cirurgia cosmética em mais detalhes para mostrar como são reforçadas e quais são suas consequências para a saúde das mulheres e acesso a prerrogativas comuns que homens em sociedades ocidentais provavelmente nem valorizam: aparecer no espaço público com a cara lavada, correr, ter tempo de lazer livre da necessidade de manutenção do corpo. Leitores poderão tirar suas conclusões sobre incluir essas práticas na compreensão da ONU. No próximo capítulo eu amplio as definições de práticas de beleza femininas na cultura ocidental através da travestilidade/transsexualismo. A performance de práticas de beleza por homens mostra que esse comportamento não é biologicamente conectado a mulheres. Mas faz mais do que isso. Como eu procuro demonstrar aqui, praticantes masculinos obtém prazer sexual de tais práticas porque elas demonstram status subordinados. Isso apoia a compreensão de práticas de beleza como comportamentos de deferência de um grupo subordinado.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 3] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

MAQUIAGEM E VÉU: MESMA COISA?

      Ao invés de serem dois lados da mesma moeda de opressão a mulheres, o véu e a maquiagem são mais usualmente vistos como opostos. A maquiagem pode até mesmo ser vista como a alternativa liberal ao uso do véu. Existe aparentemente uma diferença, que é, espera-se que mulheres respeitadas na cultura islâmica cubram suas cabeças e corpos para que homens não se sintam sexualmente tentados, enquanto no ocidente espera-se que mulheres se vistam e usem maquiagem para que os homens se sintam sexualmente tentados e para criar um banquete para os olhos deles. Isso pode parecer uma conexão. Tais expectativas refletem o dualismo tradicional que diz respeito à função das mulheres sob dominação masculina. Mulheres, tradicionalmente, mesmo no ocidente, devem se encaixar nas categorias virgem/vadia. Virgens estão fora dos limites até que se casem e sejam possuídas sexualmente por homens individualmente, enquanto vadias existem para servir homens em geral.
      Infelizmente até mesmo estudiosas do feminismo são algumas vezes incapazes de pensar a respeito de si mesmas fora desse dualismo para imaginar uma forma de vida autônoma para mulheres que não caia nessas categorias. Lama Abu-Odeh, por exemplo, em escritos sobre a readoção do véu em alguns países muçulmanos, diz que suas conclusões como feminista árabe são que “Mulheres árabes podem ser capazes de se expressar sexualmente, para que possam amar, brincar, provocar, flertar e excitar... Nelas, vejo atos de subversão e libertação” (Abu-Odeh, 1995, p. 527). Mas o que ela considera prazeroso, as mulheres que adotaram o véu viram como “mau”. Ao escolher para mulheres o papel de excitar homens ao invés de se cobrir, Abu-Odeh se prende na dualidade que é oferecida para mulheres sob dominância masculina, objeto sexual ou coberto, prostituta ou freira. Existe uma terceira possibilidade: mulheres podem inventar para si mesmas algo novo e fora dos estereótipos da cultura patriarcal ocidental e não ocidental. Mulheres podem ter acesso aos privilégios possuídos por homens de não ter que se preocupar com aparência e poder sair em público sem nada no rosto ou na cabeça.
      Tanto o véu quanto a maquiagem são frequentemente vistos como comportamentos voluntários das mulheres, adotados por escolha, que expressam agência. Mas em ambos os casos existe considerável evidência das pressões surgidas da dominância masculina que causam esses comportamentos. Por exemplo, a historiadora do comércio Kathy Peiss coloca que a indústria de produtos de beleza decolou nos EUA nos anos 1920/1930 pois nessa época as mulheres estavam entrando no mundo público de escritórios e outros ambientes de trabalho (Peiss, 1998). Ela enxerga que mulheres tiveram que se inventar como um sinal de sua nova liberdade. Mas existe outra explicação. Comentadoras feministas da readoção do véu por mulheres em países muçulmanos no final do século XX sugeriram que mulheres se sentem mais seguras e livres para ocupar e se movimentar no mundo público quando cobertas (Abu-Odeh, 1995). Pode ser isso que usar maquiagem signifique, que mulheres não tem o direito automático de se arriscar na vida pública da mesma forma que homens. Maquiagem, assim como o véu, assegura que elas estão mascaradas e não cometendo a afronta de se mostrarem como as cidadãs reais e iguais que deveriam ser em teoria. Maquiagem e véu podem revelar a falta de direitos das mulheres.
      Em alguns casos a adoção do véu é claramente o resultado de força e ameaça de violência. No Irã, cobrir-se é compulsório e forçado pelo Estado. Como Haleh Afshar explica “A desobediência aberta ao hijab e a aparição pública sem ele é punível com 74 chibatadas” (Afshar, 1997, p. 319). Não há sugestão de que mulheres podem “escolher” usar o véu, já que a imposição é tão clara e brutal, “Esses homens (membros do partido de Deus, os Hezbollahis) atacam mulheres que consideram estar inadequadamente cobertas com facas ou armas e elas têm sorte se sobreviverem a tal experiência.” (Afshar, 1997, p. 320). Maquiagem não é imposta com tamanha brutalidade em culturas ocidentais.
      Entretanto, como Homa Hoodfar aponta, o véu pode ser usado por diferentes razões em diferentes países e até em um mesmo país (Hoodfar, 1997). Em algumas situações nenhuma força óbvia é aplicada. Lama Abu-Odeh descreve a readoção do véu. Ela diz que nos anos 1970 mulheres “andavam pelas ruas de cidades árabes usando trajes ocidentais: saias e vestidos abaixo dos joelhos, saltos altos e luvas que cobriam o braço no verão. Seus cabelos geralmente eram expostos e elas usavam maquiagem” (1995, p. 524). Nos anos 1980 e 1990 muitas, mesmo algumas das mesmas mulheres, adotaram o véu, definido aqui como uma cobertura ou lenço na cabeça. Abu-Odeh nos diz que “seus corpos pareciam ser um campo de batalha” entre os valores do ocidente, a “construção capitalista na qual corpos femininos eram ‘sexualizados, objetificados, coisificados’ e a tradicional na qual os corpos femininos eram ‘transformados em bens, em propriedades’ e aterrorizados como garantias da honra (sexual) da família” (p. 524). As mulheres que adotaram o véu eram aquelas que precisavam usar o transporte público para trabalhar ou estudar. Elas estavam menos sujeitas a ser assediadas sexualmente por homens. Em ocasiões em que eram assediadas elas se sentiriam mais confortáveis a contestar se estivessem com o véu, pois não poderiam ser culpadas por ter incitado esse comportamento masculino abusivo. Era mais fácil para as mulheres e meninas que usavam véu se sentirem ofendidas e para os outros se sentirem ofendidos em apoio a elas se fossem vistas como inocentes vítimas que não mereciam tal tratamento. A adoção do véu pode, dessa forma, ser vista como uma forma de aliviar os danos sofridos por mulheres como resultado da dominância masculina. A escolha, todavia, surge da opressão ao invés de indicar agência.
      Hoodfar explica a readoção do véu no Egito onde não existe ameaça de punição brutal. Mulheres que, como Hoodfar coloca, “readotam o véu” tendem a ser de classe média baixa, educadas em universidades e trabalhadoras de colarinho branco no setor público e governamental. As razões dadas por Hoodfar para “readotar o véu” não sugerem que as mulheres tiveram alternativas razoáveis para tomar essa decisão. Uma mulher entrevistada por Hoodfar expressou resistência a ideia de usar o véu antes de se casar, mas na véspera de seu casamento encontrou considerável pressão por parte da família de seu futuro marido contra sair para trabalhar como professora, o que ela foi treinada para e esperava fazer. Seus futuros parentes argumentaram que se ela saísse para trabalhar “as pessoas iriam falar, e sua reputação poderia ser questionada” (Hoodfar, 1997, p. 323). Além disso ela sofreu assédio sexual, “Em ônibus lotados, homens que perderam seu respeito tradicional por mulheres podem molestá-la e claro que isso irá prejudicar seu orgulho e dignidade, bem como de seu marido e irmãos” (p. 323). Para resolver essas pressões ela decidiu se tornar muhaggaba (mulher que usa véu). Isso agradou a família do marido.
      As razões que Hoodfar oferece relacionam-se claramente com as tentativas das mulheres de se acomodar à dominância masculina. O véu, ela diz, demonstra a lealdade da mulher às regras da dominância masculina, “comunica alto e claro à sociedade em geral e a maridos em particular que a que veste está ligada à ideia islâmica de seu papel sexual” (Hoodfar, 1997, p. 323). Mulheres de véu podem trabalhar porque estão demonstrando que ainda respeitam “comportamentos e valores tradicionais”. Mulheres que usam o véu “diminuem a insegurança de seus maridos” e mostram a eles que “como esposas, não estão competindo, mas sim em harmonia e cooperação com eles” (p. 324). Em troca de todos esses sinais de obediência o véu “coloca mulheres numa posição de esperar e exigir que seus maridos honrem e reconheçam seus direitos islâmicos”. Dessa forma os maridos podem deixar que suas mulheres mantenham o dinheiro que ganharem e seu lado na barganha por “prover para a família de acordo com suas melhores habilidades” (p. 324). Nenhuma das razões dadas aqui sugere que a atividade é escolhida pois dá à mulher qualquer satisfação separada da que vem do alívio das forças da dominância masculina. Para ter o direito que homens possuem de trabalhar no mundo público, mulheres têm que se cobrir e preencher outros estereótipos e expectativas a respeito do papel subordinado da mulher.
      Outra mulher entrevistada por Hoodfar adotou o véu diretamente para evitar o assédio sexual enquanto trabalhava até tarde após estudar e tinha de pegar ônibus para chegar em casa, “As pessoas me tratavam mal tão frequentemente que eu chegava em casa a noite e chorava”. Ela decidiu pelo véu para que “as pessoas soubessem que eu sou uma boa mulher e que minhas circunstâncias de vida me forçaram a trabalhar até tarde da noite” (1997, p. 325). Procurar uma estratégia de evitar os ataques nas ruas por homens não é um exercício de livre escolha pois é acompanhado de opressão. Os homens normais que a assediariam no Egito podem ser vistos como o equivalente civil dos Hezbollahis que açoitam mulheres no Irã. Abu-Odeh explica os tipos de assédio sexual aos quais mulheres têm sido tradicionalmente expostas em cidades árabes quando não usam véu:
Infalivelmente sujeitas a atenção nas ruas e nos ônibus em virtude de ser mulheres, as encaram, assoviam para elas, se esfregam nelas e as beliscam. Comentários de homens como, “Que belos peitos você tem,” ou “Como você é linda,” são frequentes...Elas estão sempre conscientes de que olham para elas.
(Abu-Odeh, 1995, p. 526)

      Mas Abu-Odeh lembra a feministas que pensam que mulheres devem recusar o véu que isso poderia ser “suicídio social” (1995, p. 529). Mulheres muçulmanas não estavam em posição de se manifestarem contra o véu porque elas seriam vistas como defendendo o ocidente. Ela adiciona a influência de pregadores islâmicos como outra razão para readotar o véu: “Uma mulher que decide usar o véu é usualmente sujeita a uma certa doutrinação ideológica (por um pregador fundamentalista), na qual é dito a ela que toda mulher muçulmana precisa cobrir seu corpo para não seduzir homens, e assim obedecer a palavra de Alá” (p. 532). Isso pode ser visto claramente como doutrinação religiosa mas pode ser razoável questionar se esta é necessariamente mais poderosa em influenciar meninas a se cobrirem com o véu do que revistas e moda e a cultura de beleza no ocidente são em conseguir que meninas se cubram com maquiagem.