quinta-feira, 21 de julho de 2016

[CAPÍTULO 1, PARTE 4] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

DIFERENÇA/DEFERÊNCIA SEXUAL

     A cultura ocidental é fundamentada na noção da diferença sexual: a ideia de que existe uma diferença essencial entre homens e mulheres, expressa nos comportamentos de masculinidade e feminilidade e suas práticas concomitantes. Isso é tão dominante e onipresente, deixando pouco espaço para alternativas, que a ideia de que mulheres podem positivamente “escolher” as práticas que expressam essa diferença faz pouco sentido. A cultura ocidental, como quaisquer outras culturas de dominância masculina, exige que a “diferença” seja publicamente demonstrada. Por esse motivo a diferença é considerada como verdade. Esse é o mito mais persistente e difícil de desafiar. A prática dos diferentes comportamentos masculino e feminino por homens e mulheres é baseada na ideia de que existe algo como “diferença sexual”. Teóricas feministas francesas como Monique Wittig (1996) e Colette Guillaumin (1996) argumentam fortemente que essa diferença é política e representa a base da dominação masculina. Diferença sexual é geralmente explicada pela biologia como se existissem claramente dois sexos biologicamente distintos que exibem diferenças biologicamente criadas de comportamento e aparência. Teóricas feministas de várias disciplinas apontaram a esmagadora força com a qual, nos últimos 30 anos, os “papéis sexuais”, agora mais usualmente chamados “gênero”, são culturalmente construídos e essa análise social construcionista mais recentemente foi estendida à ideia do sexo biológico em si (Delphy, 1993). O fenômeno da intersexualidade, no qual características sexuais secundárias, hormônios e/ou estrutura genética pode incorporar elementos de ambos os supostamente distintos sexos biológicos, fortaleceu a ideia de que a noção de dois sexos é política. A ideia de dois sexos resulta da necessidade de uma cultura de dominância masculina ser capaz de identificar membros da classe dominante de homens e da subordinada classe de mulheres ao colocar bebês em uma das duas categorias ao nascer. Os gêneros da dominância masculina e da subordinação feminina são então impostos sobre os que ocupam a categoria apropriada.
     A “diferença” entre homens e mulheres é criada em e pela cultura mas é considerada natural e biológica. A grande dificuldade que tantas mulheres e homens têm em enxergar feminilidade e masculinidade como socialmente construídas ao invés de naturais, atesta a força e a potência da cultura. A teórica feminista francesa Colette Guillaumin explica a dificuldade com essa ideia cultural de que mulheres são “diferentes” (Guillaumin, 1996). Se mulheres são “diferentes” então deve ter algo do qual elas se diferem. Acontece que esse algo são “homens” que não têm outro algo do qual se diferem, eles apenas são. Apenas mulheres são entendidas como diferentes, “Homens não diferem de nada... Nós somos diferentes – é uma característica fundamental...Nós conseguimos a proeza gramatical e lógica de ser diferentes sozinhas. Nossa natureza é a diferença” (Guillaumin, 1996, p. 95). Mulheres são, de fato, entendidas como “diferentes” dos homens de várias formas, “delicadas, bonitas, intuitivas, irracionais, maternais, de corpos não musculares, a quem falta um caráter estabelecido”, como Guillaumin coloca (1996, p. 95). Mas o mais importante é que mulheres são entendidas como diferentes dos homens por ser tanto potencialmente “lindas” quanto por ser interessadas em beleza e entusiastas de dedicar enormes quantidades de tempo, dinheiro dor e estresse emocional para ser “lindas”. Isso é assumido na cultura ocidental como “natural” das mulheres e o mais universal símbolo da diferença das mulheres em relação aos homens.
A ideia da diferença sexual biológica é o maior obstáculo ao reconhecimento de que homens e mulheres na verdade existem em relação um ao outro em posições de dominância e subordinação. Como outra feminista francesa, Monique Wittig, coloca, “A ideologia da diferença sexual funciona como censura em nossa cultura mascarando, com base na natureza, a oposição social entre homens e mulheres” (Wittig, 1996, p. 24). A diferença sexual é criada por um sistema de dominação como em qualquer sistema de dominância masculina. “Os mestres explicam e justificam as divisões estabelecidas como resultado de diferenças naturais” (p. 24). Wittig argumenta que os conceitos “homem” e “mulher” são categorias políticas e seriam abolidos em uma luta de classes entre homens e mulheres se as mulheres tivessem sucesso. Mas mulheres não se envolvem nessa luta de classes. Elas não reconhecem que são dominadas porque as “oposições (diferenças) parecem como dadas, como se já estivessem lá, antes de qualquer pensamento” (1996, p. 25). Wittig cita Marx e Engels quando afirma que a classe dominante de “qualquer época” é “ao mesmo tempo a força intelectual dominante” e as ideias de qualquer tempo são as ideias dessa classe dominante (1996, p. 26) É a dominância da classe política de “homens”, de acordo com Wittig, que ensina às mulheres que “existe, antes de qualquer pensamento, qualquer sociedade, ‘sexos’ (duas categorias dentro das quais indivíduos nascem) com uma diferença constitutiva”, que é tanto metafísica quanto “natural” e adotada no pensamento marxista na forma da divisão sexual do trabalho. Essa ideia “esconde  o fato político da subjugação de um sexo pelo outro” (Wittig, 1996, p. 26).
A categoria sexual na qual humanos são colocados é a base da heterossexualidade compulsória (Rich, 1993) e “funda a sociedade como heterossexual” (Wittig, 1996, p. 27):
     A categoria do sexo é a que dita como “natural” a relação que está na base da (heterossexual) sociedade e através da qual metade da população, mulheres, é “heterossexualizada” (a concepção de mulheres é como a concepção de eunucos, a marcação de escravos, de animais) e submetida a uma economia heterossexual.
(1996, p. 27)
O propósito dessa heterossexualidade compulsória é permitir que homens “se apropriem da reprodução e produção de mulheres, bem como suas pessoas físicas por meio de um contrato chamado contrato de casamento” (p. 27).
A análise de Wittig das exigências de “categoria sexual” para mulheres é útil para entender as práticas de beleza. Ela explica que mulheres são transformadas em sexo.
     A categoria sexual é o produto da sociedade heterossexual que transforma metade da população em seres sexuais. Não importa aonde estejam ou o que façam (incluindo trabalhos no setor público), elas são vistas como (e convertidas em) sexualmente disponíveis para homens, e seus seios, nádegas, trajes, devem ser visíveis. Elas devem vestir sua estrela amarela, seu sorriso constante, dia e noite.
(Wittig, 1996, p. 28)
     Wittig sugere que nós vemos essa disponibilidade forçada a todas as mulheres, casadas ou não, como “um período de serviço sexual forçado, um serviço sexual que podemos comparar ao militar, e que pode variar entre um dia, um ano ou vinte e cinco anos ou mais”. São as práticas de beleza que marcam mulheres como as que preenchem os requerimentos de sua “corvéia” sexual; isto é, o trabalho que os camponeses devem exercer para os donos das terras sem pagamento. As práticas de beleza dão prazer aos homens, permitem sua excitação sexual, no escritório, na rua, no cinema, no quarto. Homens não habitam a categoria sexual que as mulheres habitam. Homens são muito mais do que sexo, “a categoria sexual... está ligada a mulheres, por isso elas não podem ser percebidas fora dela. Apenas elas são sexo, o sexo, e é em sexo que são transformadas em suas mentes, corpos, ações, gestos” (Wittig, 1996, p. 28).
     A ideia de que mulheres são sexo foi bem descrita no trabalho de cientistas homens, os sexólogos do século XX que exerceram importante papel em dar a “categoria de sexo” para mulheres uma base oficial na ciência e na medicina. O importante sexólogo Iwan Bloch, cita em The Sexual Life of Our Time – A vida sexual de nosso tempo (1909) um autor o qual, ele diz, “caracterizou bem a esfera sexual estendida da mulher”
     Mulheres são de fato puro sexo dos joelhos ao pescoço. Nós homens concentramos nossos aparatos em um único espaço, nós extraímos isso, separadamente do resto do corpo, porque vem pronto. Elas são uma superfície ou alvo sexual; nós temos apenas uma flecha sexual.
(citado em Jeffreys, 1985, p. 138)
     A criação da diferença sexual através das práticas de beleza é essencial para dar aos homens a satisfação sexual que eles ganham conforme realizam as tarefas de seu dia  quando reconhecem “mulher” e sentem seus pênis se encherem de sangue. Isso pode soar como um exagero da forma de pensar e se comportar dos homens mas alguns estão preparados para expressar isto claramente. J. C. Flugel em seu Psychology of Clothes Psicologia das Roupas (1930/1950) apresenta ousadamente a razão pela qual se exige que mulheres se vistam de forma diferente dos homens:
     A grande maioria do nós sem dúvida irá... admitir francamente que... não podemos encarar a expectativa de abolir o presente sistema de constante estimulação – um sistema que garante que sejamos alertados mesmo à distância sobre  o sexo de um ser que se aproxima, para que não precisemos perder a oportunidade de experienciar em qualquer grau os incipientes estágios de resposta sexual.
     Parece não haver escapatória da visão de que o propósito fundamental de adotar uma vestimenta distinta para os dois sexos é para estimular o instinto sexual.
(p. 201)

     Emmanuel Reynaud, autor de Holy Virility – Santa Virilidade, oferece uma explicação sobre a diferença na vestimenta que apoia a ideia de que ela serve à satisfação sexual masculina, “Ela deve mostrar as pernas e tornar sua vagina acessível, enquanto um homem não tem que revelar suas panturrilhas para oferecer fácil acesso a seu pênis” (Reynaud, 1983, p; 402).
     Práticas de beleza mostram que mulheres são obedientes, dispostas a fazer seu serviço, e se esforçar nesse serviço. Elas mostram, eu afirmo, que mulheres não são simplesmente “diferentes” mas, mais importante, “deferentes”. A diferença que a mulher deve incorporar é a deferência. A maneira pela qual é exigido que se manifeste diferença/deferência sexual pode variar consideravelmente entre sociedades dominadas por homens, mas não existe evidência de que existam quaisquer sociedades nas quais a diferença/deferência sexual seja irrelevante ou a ordem social da dominância masculina esteja fundada em outra coisa que não essa diferença. Como a dominância masculina teria existência sem um claro sinal de diferença que define quem é a classe dominante e quem não? Em sociedades ocidentais isso é expressado na exigência que mulheres criem “beleza” através de roupas que devem mostrar grandes áreas de seus corpos para a excitação masculina, através de saias (apesar de esta não ter sido uma regra tão universal como era há 20 anos), através de roupas apertadas, através de maquiagem, penteados, depilação, exibição de características sexuais secundárias ou sua criação por cirurgia e através da linguagem corporal “feminina”. Mulheres devem praticar feminilidade para criar a diferença/deferência sexual. Mas a diferença é de poder, e a feminilidade é o comportamento exigido da classe subordinada de mulheres para mostrar sua deferência à classe dominante de homens.


FEMINILIDADE COMO O COMPORTAMENTO DE SUBORDINAÇÃO

     As práticas de beleza nas quais mulheres se envolvem, que homens acham tão excitantes, são as de subordinadas políticas. O romance sadomasoquista da dominância masculina, no qual sexo é construído pela dominância masculina e subordinação feminina (Jeffreys, 1990), requer que alguém faça o papel de menina. A teórica feminista de sexualidade e violência sexual, Catharine MacKinnon, argumenta que os “gêneros” da dominância masculina, masculinidade e feminilidade precisam ser constantemente recriados para servir a sexualidade da dominância masculina; isto é, diferença de poder erotizada (MacKinnon, 1989). Essa compreensão ajuda a explicar a existência e persistência da feminilidade. A sexualidade da dominância masculina requer “fems” (uma parte “feminina”) e mulheres são treinadas e pressionadas a facilitas a excitação masculina.
     Teóricas feministas mostraram que o que é entendido como comportamento “feminino” não é simplesmente construído socialmente, mas politicamente construído, como o comportamento do grupo social subordinado. O trabalho de Nancy Henley sobre a política do corpo é um clássico exemplo dessa abordagem (Henley, 1977). Ela mostra claramente que as formas nas quais os seres humanos são treinados e que se espera que usem seus corpos derivam de seus lugares na hierarquia do poder. Os poderosos expressam seu privilégio de certas formas que são proibidas aos subordinados. Henley mostra que não são apenas homens que reproduzem comportamentos de poder, mas também seres humanos envolvidos em outras formas de hierarquia além de gênero, como empregadores e empregados. Os poderosos ocupam maior espaço. Não apenas empregadores têm escritórios maiores como homens terão mais espaço que mulheres em suas casas e no mundo que é só deles. Eles ocupam mais espaço com seus corpos. Assim, homens podem se alongar em um banco de ônibus ou no sofá. Das mulheres é esperado que mantenham suas pernas e braços grudados em seus corpos e que caibam no espaço que sobrou. Similarmente entrevistados não podem se estatelar enquanto estiverem na posição subordinada em uma entrevista de emprego, enquanto os entrevistadores podem. Homens, Henley mostra, abordam mulheres de uma distância menor do que abordariam homens porque às mulheres é permitido menos espaço ao redor de seus corpos.
     O toque é outra área na qual os poderosos são privilegiados. Eles podem fazer contato físico enquanto os subordinados não podem. Dessa forma, empregadores podem tocar em estagiários mas o comportamento inverso seria um atrevimento. Homens podem e tocam mulheres mas se mulheres tocam em homens isso pode ser interpretado como uma abordagem sexual e esse é um comportamento perigoso. Contato visual também é uma forma de expressar poder. Homens podem encarar mulheres e mulheres não devem encarar de volta e sim educadamente abaixar o olhar. Mas homens podem não conseguir encarar outros homens sem provocar um agressivo “tá olhando o quê?” em resposta. Esses comportamentos são aprendidos tanto por instruções diretas, como mães dizendo a suas filhas para fechas as pernas, quanto por interação social. Mas é provável que na fase adulta eles sejam vistos por quem os pratica como “naturais”. O processo de aprendizagem é esquecido. Os comportamentos de espaço, toque e contato visual exigidos dos subordinados são então entendidos como os comportamentos “naturais” da feminilidade. É sobre a base formada por esses comportamentos que as práticas de beleza são inseridas, e que saltos altos podem ser algo natural para mulheres porém ridículo em homens.
     A psicóloga feminista Dee Graham contribuiu significativamente para o entendimento da feminilidade como o comportamento dos subordinados com seu conceito de “síndrome de Estocolmo social” (Graham, 1994). Em Loving to Survive – Amando para Sobreviver ela faz uma analogia entre feminilidade e o comportamento de reféns em situações de sequestro e ameaça que foi chamado síndrome de Estocolmo. Ela explica que a ideia da síndrome de Estocolmo vem de uma situação com reféns em Estocolmo na qual ficou claro que os reféns, ao invés de reagir com rebeldia contra seus opressores, podiam se conectar com eles. Essa ligação, na qual reféns podem identificar os interesses dos sequestradores como seus próprios, vem da real ameaça a sua sobrevivência que os sequestradores representam. Graham estende esse conceito para cobrir o comportamento das mulheres, feminilidade, como uma reação à vida em uma sociedade de violência masculina na qual elas estão em perigo. Feminilidade representa síndrome de Estocolmo social, “Se um (inescapável) grupo ameaça outro grupo com violência mas também – como grupo – mostra alguma gentileza ao grupo vitimizado, um apego entre os grupos se desenvolverá. Isso é o que nos referimos como Síndrome de Estocolmo Social (ou Cultural)” (Graham, 1994, p. 57).
     Graham afirma inequivocamente que, “masculinidade e feminilidade são códigos para dominação masculina e subordinação feminina” (1994, p. 192). Ela diz que mulheres, como reféns, têm medo, e “usamos qualquer informação disponível para alterar nosso comportamento de modo a tornar a interação com homens mais suave” (p. 160). Uma das coisas que as mulheres fazem é mudar seus corpos para ganhar os homens. Ela lista as práticas de beleza danosas que são consideradas neste livro, como maquiagem, cirurgia cosmética, depilação, sapatos de salto alto e roupas restritivas como exemplos. Ela diz que essas práticas refletem:
(1)   A extensão na qual mulheres buscam se tornar aceitáveis para homens, (2) a extensão na qual mulheres buscam se conectar com homens, e dessa forma (3) a extensão na qual mulheres sentem a necessidade de atenção e aprovação masculina e (4) a extensão na qual mulheres se sentem indignas da afeição e aprovação dos homens assim como somos.
(Graham, 1994, p. 162)
     Graham também argumenta que, “feminilidade é um plano para se dar bem com um inimigo tentando ganhar o inimigo” (1994, p. 187). O termo “feminilidade”, “se refere a traços de personalidade associados a subordinados e a traços de personalidades de indivíduos que adotaram comportamentos que agradem os dominantes” (p. 187)  e “tais comportamentos que a cultura masculina classifica como ‘femininos’ são comportamentos que se esperaria caracterizar qualquer grupo oprimido” (p. 189). Esses comportamentos dos menos poderosos são necessariamente tentativas indiretas de influenciar os poderosos, “como o uso de inteligência, prudência, intuição, habilidade interpessoal, charme, sexualidade, ilusão e evitação”; isto é, comportamentos, exceto talvez inteligência, provavelmente identificáveis como essencialmente femininos.
     Graham oferece uma explicação sobre motivo pelo qual muitas mulheres acreditam que sua “feminilidade” é biológica e inerente e por que “nós acreditamos que escolheríamos usar maquiagem, enrolar nossos cabelos e usar saltos altos se homens não achassem mulheres que fazem isso muito mais atraentes” (1994, p. 197). Mulheres acreditam nisso, ela diz, porque “acreditar em outra coisa” demandaria reconhecer que nosso comportamento é controlado por “variáveis externas”; isto é, o uso da força masculina e sua ameaça. Reconhecer isso significaria que as mulheres teriam que “reconhecer nosso terror” (p. 197). Ela diz que “É assustador para mulheres imaginar não ser femininas”. E conclui examinando que o que assusta a respeito de desistir da feminilidade pode levar à decisão de desistir dela.
     Construcionistas sociais feministas como Henley e Graham entendem a tarefa do feminismo na destruição e eliminação do que temos chamado “papéis sexuais” ou “diferença sexual” e agora é mais comumente denominado “gênero”. Quando masculinidade e feminilidade são entendidas como os comportamentos de dominância e subordinação não faz muito sentido esperar que quaisquer aspectos desses comportamentos sobrevivam à destruição da dominância masculina. Christine Delphy explica que o conceito de androginia como uma maneira de lidar com a diferença de gênero – que é, tanto homens quanto mulheres poderiam combinar os comportamentos que são hoje tão rigidamente descritos como pertencentes a um ou outro – não é realizável. (Delphy, 1993). Os comportamentos de dominação e subordinação não sobreviveriam a um futuro igualitário para ser combinados de nenhuma forma. Pode haver aspectos de tais comportamentos que não estão associados com diferença de poder e que poderiam ser mais igualmente compartilhados, como o comportamento carinhoso, mas todos os comportamentos de deferência e privilégio seriam inimagináveis.

     Eu procurei mostrar o poder da expectativa cultural de que mulheres devem demonstrar feminilidade se envolvendo em práticas de beleza. As forças que exigem esse comportamento incluem uma falta de possibilidades de alternativas, a crença de que a feminilidade e suas práticas são naturais e inevitáveis, educação infantil, bullying na escola, exigências no trabalho, necessidade de aperfeiçoar o corpo odiado incutida pela cultura de dominância masculina e o medo de retaliação masculina. Como Karen Callaghan explica em sua introdução à coleção Ideals of Feminine Beauty – Ideais de Beleza Feminina (1994), o controle social no ocidente contemporâneo não é usualmente imposto aos indivíduos por força bruta mas alcançado através de “manipulação simbólica” que pode incluir coisas como propaganda e revistas femininas e “cria a ilusão de liberdade e escolha” (Callaghan, 1994, p. x.). O fato de que algumas mulheres dizem que sentem prazer com as práticas não é inconsistente com seu papel na subordinação aos homens. Isso poderia talvez ser visto como a capacidade de algumas mulheres de tirar uma virtude de uma necessidade. No próximo capítulo eu argumento que as práticas de beleza ocidentais precisam ser incluídas na definição das Nações Unidas como práticas culturais danosas. Esse conceito é um antídoto útil para o debate da agência versus subordinação que abordei aqui porque é fundado numa compreensão do poder e da imposição cultural de práticas que prejudicam mulheres e crianças. Para práticas que são identificadas como danosas, “escolha” não é defesa. 

domingo, 17 de julho de 2016

[CAPÍTULO 1, PARTE 3] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

A VIRADA CULTURAL

     O fortalecimento do feminismo liberal é só um aspecto da agitação na maneira com a qual se podia falar em opressão que ganhou espaço nos anos 80 e 90. Uma mudança se fez na academia também. O movimento em direção à ênfase na capacidade de escolha e agência das mulheres sobre formas de coerção que causavam o envolvimento feminino em práticas de beleza é um aspecto do controle pós-moderno sobre o pensamento de esquerda que Frederic Jameson chamou “a virada cultural” (Jameson, 1998). O pensamento pós-moderno rejeita a noção de que existe algo como uma classe dominante que pode criar ideias dominantes. Teóricos do marxismo cultural que rejeitaram o pós-modernismo, como Frederic Jameson e Terry Eagleton, explicam que esse conjunto de ideias emergiu para servir a um estágio particular da história do capitalismo. Eagleton, por exemplo, argumenta que o pós-modernismo se enraizou em resposta a uma falha percebida da esquerda, e a morte, entre vários de seus membros, de qualquer ideia de revolução ou mudança social séria (Eagleton, 1996). Eagleton convida seus leitores a imaginar que um movimento político sofreu uma derrota histórica:
A suposição governante de tal época, alguém pode imaginar, seria que o sistema em si fosse intransponível... daí surgiria um interesse nas margens e brechas do sistema... O sistema não poderia ser superado; mas poderia ao menos ser momentaneamente transgredido... Fascinado pelas falhas, alguém poderia até mesmo pensar que não há um núcleo social afinal de contas.

(Eagleton, 1996, p. 2)
     Em particular o controle do pós-modernismo sobre o pensamento crítico significou o descarte da noção de ideologia porque essa noção implica que existam coisas como agentes ou interesses responsáveis pela opressão. A teórica feminista radical australiana Denise Thompson argumentou poderosamente para manter o conceito de ideologia para a teoria feminista. Ela responde o que considera ser mistificação pós-moderna assim: “abandonar os conceitos de ‘agentes e interesses’ é abandonar política. Se não existem ‘agentes’, não existem autores e beneficiários das relações de dominação, e ninguém cuja agência humana é bloqueada por interesses poderosos” (Thompson, 2001, p. 23). Thompson critica o efeito que esse abandono do conceito de ideologia exerce sobre a teorização feminista da cultura popular. Uma compreensão importante de teóricos culturais pós-modernos é que há pouco a escolher entre baixa e alta cultura, de forma que as novelas e algumas vezes os filmes pornográficos acabam sendo vistos em pé de igualdade de valor com outros produtos culturais. Essa crença está atrelada à noção de que os consumidores dessa cultura popular são bem informados e sábios imbuídos de agência e escolha, podendo selecionar e rejeitar entre a miscelânea de ofertas em interesse próprio. Thompson mostra o problema dessa tendência no trabalho de Michele Barrett, uma teórica feminista socialista britânica, segundo a qual o socialismo tem sido ultrapassado pelo pós-modernismo. Barrett critica teóricas feministas por se referirem a “fenômenos culturais como novelas, ficção de realeza ou romântica” como representantes de uma ideologia subordinadora para mulheres porque, como Barrett diz, esta ignora o “entusiasmo apaixonado de muitas mulheres para os produtos nos quais elas são tidas como vítimas” (citado em Thompson, 2001, p. 24).
     Beleza e Misoginia pode se encaixar bem nesses escritos feministas que estão sendo criticados porque eu estou argumentando aqui que ideologias de beleza e moda como as que circularam na cultura popular subordinam as mulheres, independente do quão apaixonadamente essas mulheres possam aderir a eles e cortar seus corpos em resposta. Na verdade, como Thompson diz, “entusiasmo apaixonado é a forma com que a ideologia deve operar se quiser operar” (2001, p. 24). Thompson sugere que o “único critério para julgar se algo é ideológico é se reforça ou não relações de poder” (p. 25). Testar o reforço das relações de poder é útil para a análise práticas de beleza como maquiagem, moda e labioplastia que são examinadas neste livro.
     A “virada cultural” entrou na disciplina de estudos das mulheres também. Ideias pós-modernas tornaram-se dominantes na maneira pela qual a opressão e a sexualidade das mulheres puderam ser pensadas e descritas na academia. A tomada de controle das compreensões pós-modernas, combinada ao declínio da força do feminismo e outros movimentos sociais por mudança radical, enfraqueceu a crítica feminista à beleza. A ênfase no trabalho de algumas pesquisas feministas mudou de examinar como as práticas de beleza atuam na opressão e nos danos a mulheres para a questão de como as mulheres podem aproveitar essas práticas e ser empoderadas por elas. (Davis, 1995; Frost, 1999).
     Algumas pesquisadoras feministas consideraram as ideias de um teórico “pós-moderno”, Foucault, úteis para abordar as complexidades da construção das “subjetividades” feminimas ou compreensões delas mesmas. Tanto Susan Bordo (1993) quanto Sandra Bartky (1990) usam abordagens Foucaultianas para explicar a forma pela qual mulheres são sujeitas ao regime da beleza na medida em que se envolvem em auto-policiamento. Entretanto, como Bordo aponta, o problema com a adoção de ideias pós-modernas em geral é que elas levam alguns escritores a desconsiderar a materialidade de relações de poder. Bordo identifica os exageros e adaptações de Foucault que ela considera “deturpação” inútil, porque elas tornam difícil que muitas pensadoras feministas identifiquem as ações das mulheres no contexto das relações de poder. Ela diz sobre “subjetividade pós-moderna libertada” que, “Essa abstrata, deslocada, desencarnada liberdade... celebra a si mesma apenas através do enfrentamento da práxis material das vidas das pessoas, do poder normalizador de imagens culturais, e da triste continuidade social da realidade da dominância e subordinação” (Bordo, 1993, p. 129). Ela sugere que teóricos dos estudos culturais pós-modernos podem ter sido capturados pelo zeitgeist dos próprios programas de entrevistas da televisão que podem ser objetos de sua análise. A trivialidade e superficialidade de tais formas culturais têm sido absorvidas pela crítica cultural e substancialmente desradicalizaram sua análise:
Todos os elementos do que eu aqui chamei euforia da “conversação pós-moderna” com a escolha individual e prazer criativo são satisfeitos com o tempero da particularidade e da desconfiança do padrão e da aparente coerência, celebração da “diferença” junto com uma ausência da perspectiva crítica diferenciando e pesando “diferenças,”... tornaram-se reconhecíveis e familiares elementos de muito do discurso intelectual contemporâneo.

(Bordo, 1993, p. 117)
     Ela critica um “pós-modernismo acadêmico comemorativo” que tornou “muito ultrapassado – e ‘totalitário’ – falar sobre o controle da cultura sobre o corpo” (Bordo, 1993, p. 117). Os “totalizadores” são vistos como quem representa “sujeitos ativos e criativos como ‘massa de manobra,’ ‘tolos passivos’ da ideologia” e como quem enxerga a ideologia dominante como “coerente e inequívoca, ignorando tanto suas brechas que estão continuamente permitindo a erupção da ‘diferença’ quanto a polissêmica, instável e aberta natureza de todos os textos culturais” (Bordo, 1993, p. 117).
     O efeito da virada cultural nas ideias feministas sobre beleza tem três faces: As mulheres são vistas como tendo escolha e agência em relação a práticas de beleza, ou mesmo empoderadas por elas. Mulheres são representadas como tendo o poder de “brincar” com práticas de beleza porque ao invés de opressivas elas podem agora ser interpretadas como divertidas. Revistas de moda e cultura popular são reintepretadas como fascinantes recursos a partir dos quais meninas e mulheres podem ser inspiradas e criativas ao invés de exercerem papel no reforço da ideologia dominante.
     O trabalho de Kathy Davis é um bom exemplo de como a uma teórica feminista influenciada pela virada cultural aplica o assunto com a demonstração da agência feminina em práticas de beleza (Davis, 1995). Ela pesquisou os motivos pelos quais mulheres se submeteram a cirurgia de aumento de seios na Holanda, e explica que está determinada a não representar suas entrevistadas como “massa de manobra” que simplesmente assimilaram as mensagens negativas da cultura da beleza sobre a inferioridade do corpo feminino. Ela diz que a cirurgia é “uma intervenção na identidade” que pode permitir uma mulher a “abrir a possibilidade de renegociar sua relação com o próprio corpo e construir um diferente senso de si” (Davis, 1995, p. 27). Davis diz que a cirurgia cosmética nos seios “tira o poder” do “aprisionamento da objetificação”. Ela pode “fornecer uma via na direção da qual pode-se tornar um sujeito com um corpo ao invés de um corpo objetificado” (1995, p. 113). No final de seu livro, Davis leva a noção do respeito à agência das mulheres a novos extremos ao argumentar que a cirurgia cosmética é um meio par atingir moral e só tem resultado em mulheres, “Cirurgia cosmética é sobre moralidade. Para uma mulher cujo sofrimento foi além de um certo ponto, a cirurgia cosmética pode se tornar uma questão de justiça – a única coisa justa a se fazer” (1995, p. 163).
     Liz Frost é um expoente dessa abordagem em relação a maquiagem. Ela descreve a atividade de “montar looks” como algo “que não pode ser evitado” (Frost, 1999, p. 134);  isto é, natural e inevitável. Ela não vê a necessidade de “montar looks” como ideológica ou a serviço da dominância masculina. Ela zomba de teóricas feministas por serem críticas à prática, fazendo mulheres se sentirem culpadas e ambivalentes. Tal negatividade, ela argumenta, está alinhada à religião do patriarcado que diz que as mulheres não podem ser vaidosas. Ela vê “montar looks” como uma fonte de prazer para mulheres bem como de empoderamento. Ela usa conceitos pós-modernos para argumentar que “montar looks” é de vital  necessidade para mulheres:
Para que mulheres se sintam poderosas e no controle, para sentir um senso de agência e competência (o que, eu diria, é essencial para a saúde mental), montar looks não pode mais ser visto como um opcional extra, mas como um processo de identificação central que pode oferecer significados como prazer, expressão criativa e satisfação fazendo com que mulheres possam se apropriar de um espaço discursivo para contradizer os discursos silenciadores de vaidade, anormalidade, superficialidade e não pertencimento.

(Frost, 1999, p. 134)
     Para Frost a crítica feminista a práticas de beleza atrapalha a prazerosa agência feminina em usar batom.
     A ideia de que a beleza feminina e as práticas de moda podem ser divertidas ao invés de opressivas deve algo às ideias de Judith Butler sobre “performatividade”. Butler argumenta em Gender Trouble (Problemas de Gênero) (1990) que o gênero é socialmente construído através da realização diária de rituais que o constituem, “Gênero é a repetida estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos sob uma estrutura altamente reguladora solidificada ao longo do tempo para produzir a aparência de substância, de existência natural” (1990, p. 33). A ideia de que o gênero é socialmente construído não é nova para o feminismo, sendo fundamental para a compreensão feminista. Muito do entusiasmo associado a seu trabalho vem da forma com que foi interpretado por teóricos queer e ativistas ao dizer que a performance do gênero por atores além dos usuais, como em drag por exemplo, é uma tática revolucionária porque demonstra o fato de que o gênero é socialmente construído. Seu trabalho tem sido inspiração para todo o projeto cultural queer de brincar com e trocar papéis de gênero entre atores que enxergam a si mesmos como agentes de trabalho político quando usam os aparatos de um gênero em um corpo usualmente associado ao oposto. Butler argumentou que essa interpretação de seu trabalho – que gênero pode estar sujeito à escolha individual – é incorreta. Em resposta ela escreveu Bodies that Matter (Corpos que importam) (1993), argumentando que a performance de gênero é na verdade o resultado de coerção e não está aberta a fácil manipulação,
Se gênero não é um artifício a ser adotado ou descartado de qualquer jeito e, dessa forma, não é um efeito de escolha, como podemos compreender o constitutivo e compulsório status das normas de gênero sem cair na armadilha do determinismo cultural?

(Butler, 1993, p. x)
     Apesar de Butler argumentar que foi mal intepretada, é precisamente essa aparente má interpretação que foi adotada por teóricos queer para argumentar que drag, troca de gênero, transgeneridade e até mesmo sadomasoquismo, podem ser formas revolucionárias de brincar com gênero e dessa forma dificultam a teorização de feministas sobre as práticas de beleza de forma séria.
     O trabalho de Ruth Holliday sobre moda é um exemplo dessa abordagem despreocupada da teoria queer. Em um trabalho intitulado “Fashioning the Queer Self” ela argumenta que:
A moda pós-moderna coloca aspas em volta das roupas que revitaliza, permitindo que sejam relidas em um espaço de distância irônica entre quem veste e o traje. Isso abre um espaço para “brincar” com a moda que é a antítese de ser vítima dela, e dessa forma os argumentos feministas sobre a regulação dos corpos femininos através da moda declinam em importância.

(Holliday, 2001, p. 218)
     Nem todos podem notar as aspas, entretanto, quando veem as mesmas velhas diferenças de gênero nas roupas apesar do fato de que os jogadores as “revitalizaram” através da inspiração pós-moderna.
     O trabalho de Angela McRobbie (1997) é um exemplo de outro produto da “virada cultural”, a ideia de que a cultura popular não deve ser vista como ideológica mas como algo que apresenta recursos úteis para a criatividade e agência das mulheres. McRobbie é da escola de estudos da cultura pós-moderna que tenta ser incansavelmente positiva sobre a relação de mulheres e meninas com a cultura e argumenta que mulheres não são “massa de manobra” mas trabalha o conteúdo da moda e das revistas de moda, interpretando o que poderia ser visto como mensagens da cultura patriarcal em formas empoderadoras, criativas e diversas. Além disso, ela argumenta, revistas de jovens mulheres estão na verdade envolvidas com práticas pós-modernas tais como “paródia” e “reprodução” e “ironia” e “os leitores entendem a piada” (McRobbie, 1997). Jovens garotas lendo More e 19 não estão apenas internalizando os roteiros patriarcais nas revistas mas usando-os criativamente.
     Essas revistas para jovens mulheres contém quantidades crescentes de conteúdo sexual, instruções para jovens mulheres sobre o que fazer no sexo e como lidar com problemas sexuais. Esse conteúdo sexual distingue essas revistas contemporâneas das de décadas passadas. McRobbie chama isso de “novas sexualidades em revistas de meninas e mulheres” (1997). Ela escreve sobre como as meninas gostam desse conteúdo sexual porque elas tem “identidades sexuais de busca por prazer” (1997, p. 200). Ela diz que feministas estão erradas em desprezar essas revistas porque tantas centenas de milhares de jovens meninas gostam delas, e argumenta que as revistas tem “trazido o feminismo à bordo” (1997, p. 207) e então feministas não podem condená-las de cara. Ela conclui um artigo sobre essas “novas sexualidades” adotando a linha pós-moderna que não existe algo como a verdade, e as feministas precisam aceitar que “Talvez é apenas estando disposto a deixar pra lá e abdicando desse poder sobre a verdade, que o feminismo adquire um importante lugar nas revistas” (McRobbie, 1997, p. 208). Feminismo pode significar qualquer coisa, desde que consigamos ler ironia, paródia e representação no que poderia de outra forma parecer uma ideologia patriarcal comum.
     Infelizmente a pesquisa de cientistas sociais feministas sobre o que está realmente acontecendo com jovens mulheres e meninas em relações heterossexuais não dá suporte ao exaltado entusiasmo dos incansavelmente positivos estudos culturais pós-modernos. Os modernos, pós-marxistas estudos culturais do presente podem ficar entediados pela atenção à realidade material que diz respeito aos cientistas sociais, mas a pesquisa sobre a experiência de meninas sugere que eles estão longe da “busca pelo prazer” e certamente não são empoderadas. Elas são controladas em suas relações com meninos pelo “homem na cabeça” (Holland, et al., 1998). A pesquisa de Lynn Phillips sobre mulheres jovens e heterossexuais concluiu que elas estavam tendo que aprender a separar a mente e o corpo para permanecerem em controle de seus encontros sexuais e fazendo sexo como uma performance para o prazer sexual masculino ao invés de satisfazerem desejos próprios. (Phillips, 2000).
     Phillips concluiu que experiências sexuais violentas eram comuns entre mulheres jovens que ela entrevistou no final dos anos 90. Na verdade, 27 das 30 mulheres “descreveram pelo menos um encontro que preenche as definições legais de estupro, agressão ou assédio” (2000, p. 7). Mas, apesar do fato de que muitas estavam em cursos de estudos de mulheres e apesar do trabalho de feministas por 20 anos desafiando o estupro e tentando tornar possível para mulheres reconhecer e desafiar a violência contra elas, “apenas duas mulheres usaram tais termos para descrever experiência pessoal” (Phillips, 2000, p. 7). Uma razão, ela sugere, é que jovens mulheres hoje em dia foram criadas para acreditar em seu próprio poder e agência, precisamente aquela que a teoria dominante de estudos culturais atribui a elas, e isso dificulta o reconhecimento do estupro:
Embora estudiosas feministas possam falar de dominação masculina e vitimização feminina como um fenômeno óbvio, mulheres mais jovens, criadas para acreditar em sua própria independência, invulnerabilidade e no sexo como um direito conquistado, podem não adotar tão prontamente tais conceitos, mesmo que elas tenham sido estupradas, assediadas e agredidas por homens.

(Phillips, 2000, pp. 10-11)

     Liz Frost, a escritora que vimos anteriormente declarando que “montar looks” era um “processo de identificação central” positivo para mulheres, em outro trabalho forneceu boas evidências do motivo pelo qual mulheres “montam looks” que se relaciona claramente com opressão. Em um livro sobre a relação de jovens garotas com seus corpos, ela argumenta que pode-se dizer que jovens mulheres no ocidente sofrem de “ódio ao corpo” (Frost, 2001, p. 2). Ela aponta que apesar de ser esperado que as mulheres que estejam perdendo a habilidade de representar o ideal de beleza feminina através da idade possam ser mais vulneráveis ao ódio ao corpo, são na verdade as mais jovens que sofrem mais. Ela diz que os corpos das mulheres são “inferiorizados – estigmatizados... em uma abrangente ideologia patriarcal. Por exemplo, biologicamente e psicologicamente, os corpos das mulheres são vistos como tanto desprezíveis em seu estado natural quanto inferiores aos corpos masculinos” (2007, p. 141). O ódio ao corpo é manifestado em autoflagelação e esse dano está se tornando mais e mais sério tanto em jovens mulheres quanto em jovens lésbicas e homens gays. Uma das entrevistadas de Frost, quando perguntada “Existe alguma jovem mulher que esteja feliz com o corpo?” respondeu, “Bem, se existe, eu não conheço!” (2001, p.154). Bullying, nos relatos das jovens mulheres, exerceu um grande papel criando as agoniantes relações que elas tinham com seus corpos. A humilhação constante de meninas devido à aparência por parte de seus colegas de escola parece ser um elemento na criação do ódio ao corpo. Uma entrevistada explica que isso leva a meninas meticulosamente tentando melhorar suas aparências com práticas de beleza como maquiagem. Essa “montagem de looks” que Frost celebra pode ser vista, apesar de ela não fazer essa conexão, como uma forma de amenizar a vergonha e o desespero que uma cultura dominada por homens cria em mulheres. A cultura em que jovens mulheres ocidentais crescem não é tão diversa e aberta a brincadeiras como alguns estudiosos e teóricos queer sugerem.

sábado, 9 de julho de 2016

Homens não matam mulheres por "amor"

Título original: Men don't kill women out of 'love'
Autora: Meghan Murphy
Disponível em: http://goo.gl/qY2du2
Tradução: Laryssa Azevedo
Kelsey Annese, 21 e Colin Kingston, 24
Domingo de manhã, Colin Kingston apareceu na casa de sua ex namorada, com raiva e equipado com uma grande faca. Ele supostamente entrou por uma porta dos fundos* e subiu para o quarto de Kelsey Annese, de 21 anos, onde a encontrou com Matthew Hutchinson, 24. Ele e Annese namoraram por três anos até que ela terminou com ele e seguiu em frente. Ao encontrar Annese na cama com quem ele presumiu ser seu novo namorado, Kingston esfaqueou os dois, então ligou para seu pai, dizendo que havia matado sua namorada e que planejava também se matar. Quando a polícia chegou, os três estavam mortos.

Por que? Bem, de acordo com a mídia, ele estava de coração partido.

“Nós acreditamos que o senhor Kingston estava perturbado devido ao término, o que levou aos eventos de ontem,” como o Oficial Szczesniak contou aos repórteres em uma coletiva de imprensa. Dezenas de canais de mídia ficaram felizes em aceitar esse ângulo.

Uma manchete pergunta, “Um coração partido levou Colin Kingston a matar duas pessoas?” Outra apenas afirma, “Matthew Hutchinson, jogador de hockey de North Vancouver, encontrado morto no estado de Nova York,” deixando os leitores confusos sobre o porquê de a vítima mulher – o alvo primário da violência – foi tão facilmente apagada da história. “Um homem de 24 anos com raiva devido a um término recente esfaqueou fatalmente sua ex-namorada e outro estudante da SUNY-Geneseo antes de se matar,” reporta Heavy.

O que nós temos que acreditar, caso não tenha ficado claro, é que o “amor” fez com que esse homem matasse uma mulher. Essa é uma mensagem que ouvimos com tanta frequência que provavelmente parece razoável para muitos. Mas não é razoável. Homens não matam por “amor,” eles matam pelo desejo de controlar. “Se eu não posso ter você, ninguém mais pode,” é um refrão comum que ouvimos de homens abusivos. E, frequentemente, eles falam sério.

Todos os dias, três mulheres são mortas por seus parceiros ou ex-parceiros abusivos. É sabido que mulheres correm maior perigo ser feridas ou sofrer violência quando elas deixam ou tentam deixar seus abusadores. Nós deveríamos acreditar que esses homens estão matando suas ex-esposas ou namoradas porque eles estão “com o coração partido” ou “perturbados devido ao término?” Ou nós podemos dizer a verdade, e dizer que homens matam suas parceiras porque eles querem poder sobre essas mulheres – porque eles querem controle, porque eles acreditam que possuem suas esposas e namoradas?

Homens que matam parceiras tendem a ser possessivos, ciumentos e controladores – eles se sentem proprietários de “suas” mulheres. E quando essas mulheres escapam, seu último esforço para controle completo é assassinato. “Você não pode me deixar, você pertence a mim.” Eles preferem ver essas mulheres mortas a aceitar a rejeição ou a ideia de que mulheres são livres para fazer suas próprias escolhas sobre suas vidas.

Horas antes dos assassinatos, Kingston foi visto (sábado a noite) no distrito de bares de Geneseo. Ele tinha, conforme reportado, feito “comentários suicidas” para as pessoas.
A mídia e a polícia querem que acreditemos que esse foi um “crime passional,” mas aparecer com uma faca na casa de sua ex namorada, após sair ameaçando suicídio (algo que homens abusivos frequentemente fazem na tentativa de manipular suas parceiras para que fiquem ou voltem) não soa como um “crime passional” para mim. Soa como um homem mimado e possessivo procurou sua ex-namorada para puni-la pelo crime de ser livre – livre dele.

Quanto mais nós falamos sobre violência masculina contra mulheres como “passional” ou como algo incontrolável – ligado a amor ou dor de cotovelo, mais pretextos damos para coisas como abuso doméstico e privilégios masculinos. Existem muitas mulheres nesse mundo (homens também!) que tiveram seus corações partidos das formas mais horríveis e injustas possíveis... E mesmo assim, suas emoções não os levaram a matar. Esse tipo de violência é um crime de gênero e nós devemos nomeá-la como tal. Disfarçar a verdade irá nos levar apenas a mais violência – isso nós sabemos.

*EDIT: Inicialmente eu li reportagens que diziam que deixaram Kingston entrar, mas parece que ele, na verdade, entrou por uma porta dos fundos.