terça-feira, 7 de junho de 2016

Confrontando as Mentiras Liberais Sobre Prostituição - Evelina Giobbe (1990) PARTE I

Este texto faz parte do livro The Sexual Liberals and the Attack on Feminism, editado por Dorchen Leidholdt e Janice G. Raymond, publicado em 1990. 
Título Original: Confronting Liberal Lies About Prostitution
Autora: Evelina Giobbe
Tradução: Laryssa Azevedo

     WHISPER¹ é uma organização nacional de mulheres sobreviventes da indústria do sexo. Nosso propósito é expor as condições que tornam mulheres e crianças vulneráveis à exploração sexual e os prendem em sistemas de prostituição, expor e invalidar mitos culturais sobre mulheres usados na prostituição e na pornografia, e acabar com o comércio de mulheres e crianças. Nós definimos sistemas de prostituição como qualquer indústria na qual corpos de mulheres e crianças são comprados, vendidos ou negociados para uso e abuso sexual. Esses sistemas incluem pornografia, shows de sexo ao vivo, peep shows (exibição de filmes pornográficos em cabines, geralmente localizadas em livrarias de conteúdo adulto), escravidão sexual internacional e prostituição como é comumente definida.² Todas essas indústrias são simplesmente diferentes veículos comerciais através dos quais homens comercializam mulheres e crianças.

     Nós escolhemos o acrônimo WHISPER (sussurro), porque mulheres em sistemas de prostituição sussurram entre si sobre coerção, degradação, abuso sexual e assédio sobre os quais a indústria do sexo é fundada, enquanto mitos sobre prostituição são clamados na pornografia e na mídia de massa, e por autodenominados “especialistas”. Essa mitologia, que esconde a natureza abusiva da prostituição, é ilustrada pela ideologia de liberais sexuais que erroneamente alegam que prostituição é uma escolha de carreira; que prostituição sintetiza a liberação sexual das mulheres; que prostitutas estabelecem as condições sexuais e econômicas de suas interações com seus clientes; que a relação cafetão/prostituta é um acordo social ou de negócios mutuamente benéfico no qual mulheres entram livremente; que ser prostituta ou cafetão é ocupação aceitável e tradicional em comunidades negras. 
     O liberalismo sexual desenvolveu três argumentos principais que tentam explicar o papel central dos cafetões no recrutamento de mulheres e garotas na chamada prostituição voluntária: “cafetões como gerentes de negócios”; “cafetões como minoria estigmatizada”; e “cafetões como amantes ou namorados”. Todos os três modelos foram adotados e promovidos por Priscilla Alexander³, no NTFP (The National Task Force on Prostitution, A Força Tarefa da Prostituição) e no COYOTE (Cast Off Your Old Tired Ethics, Abandone Sua Ética Ultrapassada), e Arlene Carmen e Howard Moody, falando no púlpito da Judson Memorial Church e em seu livro Working Women: The Subterranean World of Street Prostitution (1985) (Mulheres Trabalhando: O Mundo Subterrâneo da Prostituição de Rua). Como suas visões coletivas representam a promoção de e apologia à exploração comercial de mulheres através da pornografia e prostituição feita pelo liberalismo sexual, este artigo abordará o trabalho deles.
     Para entender como cafetões e aliciadores foram redefinidos como “gerentes de negócios”, é preciso examinar o mito de que a prostituição é um trabalho como outro qualquer. De acordo com o liberalismo sexual, “Prostituição é uma ocupação feminina tradicional, uma ocorrência diária na qual o desejo biológico encontra a necessidade econômica.” E continua – de forma ambígua – informando que é “um ato primariamente pessoal e íntimo” e ao mesmo tempo “um dos últimos pilares da livre iniciativa e do capitalismo liberal” (Arlene Camen e Howard Moody, 1985). O fato de a prostituição requerer a mercantilização dos corpos femininos para venda no mercado retira o ato da esfera pessoal. Além disso, sobreviventes descrevem a prostituição como “nojenta,” “abusiva,” e “como estupro,” e explicam que aprenderam a lidar com ela desassociando-se de seus corpos ou usando drogas e álcool para entorpecer a dor física e emocional (WHISPER, 1988). Dessa forma, seria mais correto descrever a prostituição como incômoda, indesejada e muitas vezes claramente sexo violento que mulheres suportam ao invés de um “ato pessoal e íntimo.”
     A falha central da análise do liberalismo sexual é que esta ignora as sobreviventes da prostituição que testemunharam repetidamente que não experimentaram prostituição como uma carreira (WHISPER, 1988). Ademais, a análise desconsidera a função social da prostituição: estender a todos os homens o direito de acesso incondicional a mulheres e meninas adicionado aos privilégios aproveitados por maridos e pais dentro da instituição do casamento. Essas dinâmicas são claramente entendidas por mulheres usadas nos sistemas de prostituição, como ilustrado na observações de uma sobrevivente que conectou o abuso físico e emocional ao qual foi submetida em sua família e seus casamentos ao subsequente recrutamento na prostituição por um cafetão: “Eu basicamente apenas pensei que mulheres eram colocadas na Terra para o prazer sexual dos homens em troca de casa e comida” (WHISPER, 1988).
     Alguns liberais justificam prostituição como uma criação altruísta das mulheres negras. “Prostituição não é uma coisa estranha às mulheres negras,” escrevem Carmen e Moody. “Em todas as cidades sulistas nos anos 1920 e 30 o distrito da luz vermelha era localizado na área do gueto onde jovens garotos brancos ‘descobriam sua masculinidade’ com a ajuda de prostitutas de dois dólares (...) Prostitutas(...) estavam integrando negros e brancos muito antes dos movimentos pelos diretos civis” (1985: pp. 184-185). Espantosamente, Carmen e Moody consideram a compra e venda de mulheres negras por homens brancos e seus filhos como a vanguarda do fim da segregação.
     A supremacia masculina branca intensifica condições opressivas que fazem com que mulheres negras em particular fiquem vulneráveis ao recrutamento ou coerção para a prostituição. Ao limitar oportunidades educacionais e de carreira e fomentando dependência em um inadequado e punitivo sistema de bem-estar, o racismo cria vulnerabilidade econômica. Isso é ilustrado pelo testemunho de uma mulher negra que sobreviveu a prostituição:
Dos negros que chegavam em Indiana, na usina siderúrgica de lá, eles contrataram homens. Todos os homens conseguiram empregos na usina; pouquíssimas mulheres. Você realmente tinha que ser muito bonita ou conhecer alguém, de modo que não existiam trabalhos no campo, não existiam trabalhos nos escritórios para você, a não ser que você conhecesse alguém ou algo; mas existiam muitos empregos para você nos clubes de striptease, como dançarina ou até mesmo em alguns restaurantes e bares do lado de fora das usinas para onde os homens iam. (WHISPER, 1988) 
     Estereótipos racistas acerca de mulheres negras na pornografia e políticas racistas que localizam livrarias pornográficas, peep shows, bares de topless e prostituição em zonas pobres de vizinhança negra e étnica, criaram um ambiente em que mulheres negras são particularmente vulneráveis. 
Jovens mulheres têm alguém como modelo. Em minha família e em minha vizinhança e ao meu redor existia um tipo de estilo de vida, um estilo de vida no qual você acaba morrendo ou na cadeia, e foi daí que eu aprendi(...) cafetões me ensinaram, a sociedade me ensinou, minha vizinhança me ensinou, homens em geral, me ensinaram que o caminho para superar isso é usar minha aparência e meu corpo. (WHISPER, 1988)
     Ao não fornecer programas de intervenção efetivos para mulheres negras que são aprisionadas em relacionamentos abusivos – incluindo prostituição – em suas próprias comunidades, políticas racistas enviam a mensagem de que essas mulheres não merecem ajuda:
Eu sinto que as agências de serviço social ignoram as necessidades das mulheres negras (...) Em minha comunidade, crescendo como uma garota negra e até mesmo hoje, não existia nenhuma agência lidando com assédio, prostituição ou estupro (...) Para mim, ser abusada sexualmente por homens e não poder falar sobre isso, não ter ninguém para conversar sobre isso, sendo varrida para baixo do tapete como se isso fosse um estilo de vida (...) fez com que eu voltasse lá e fosse abusada de novo porque ninguém estava me dizendo que isso não era certo, então eu senti que devia me conformar com isso. (WHISPER, 1988)
     A aplicação de políticas racistas desproporcionalmente tem como alvo mulheres negras para assédio, captura, prisão e aplicação de multas (Bernard Cohen, citado em Nancy Erbe, 1984.) Tais ações criam uma porta giratória através da qual mulheres são tiradas das ruas para os tribunais e cadeias e voltam para as ruas para ganhar dinheiro para pagar as penalidades. A aplicação seletiva de leis que proíbem prostituição cria um tipo de regulação ilegítima na qual um imposto é cobrado primariamente contra mulheres negras por homens brancos que projetam, mantêm, controlam e se beneficiam do sistema de abuso no qual estas mulheres são aprisionadas.
     Por último, racismo institucional coloca mulheres negras em um duplo constrangimento ao forçá-las a ir a agências dominadas por brancos para procurar alívio e compensação para seus danos. Se elas falarem abertamente sobre os abusos mantidos em suas comunidades, elas arriscam ser isoladas, ter suas alegações usadas para fomentar estereótipos racistas, e nunca receber apoio efetivo. Se elas permanecerem em silêncio, restam poucos recursos que podem ser usados para obter uma solução efetiva. Dessa forma, o racismo mantém mulheres negras como reféns da lealdade familiar e dos laços da comunidade. Esse dilema é bem articulado por outra mulher negra que sobreviveu a prostituição:
Eu fui ensinada que o que acontece aqui fica aqui. Isso se aplica não apenas à casa, você não fala sobre os negócios de outras pessoas na comunidade, no bairro, então isso se torna uma coisa fechada que se estende da minha casa à casa do vizinho, à igreja (...) Por não poder ir a agências brancas e pedir ajuda eu fui mantida na comunidade, sofrendo violência sexual – que é prostituição e assédio – porque eu não tinha informação, não me era permitido ter informação. As únicas pessoas com as quais eu podia falar eram justamente as que moravam em minha casa, em meu bairro, meu ambiente que dizia que estava tudo certo, que havia concordado com isso ou se ajustado a isso. (WHISPER, 1988)
     O papel do racismo no recrutamento de mulheres para sistemas de prostituição e como um impedimento para sua saída é complexo e multifacetado. Esse é um problema que sobreviventes tem que começar a apurar com mulheres negras na grande comunidade feminista. Esse discurso deve começar com um entendimento das realidades sociais sob as quais mulheres negras são forçadas a viver em uma cultura de supremacia masculina e branca e com o conhecimento de que quaisquer estratégias para mudança devem vir de mulheres negras, em particular as que sobreviveram a exploração sexual para fins comerciais. Sem esse tipo de liderança, análises racistas e misóginas da prostituição em comunidades negras – como aqueles colocados por Carmen e Moody – vai continuar a facilitar e manter o comércio de mulheres e crianças negras.
     “Prostituição envolve uma igualdade de sexo com poder” afirma COYOTE. Mas ao invés de reconhecer o poder que os cafetões e clientes exercem sobre mulheres usadas na prostituição, COYOTE vê como um arranjo antitético: “Para a mulher/prostituta, esse poder consiste em sua habilidade de definir os termos de sua sexualidade, e exigir pagamento substancial por seu tempo e habilidades” (Priscilla Alexander, 1987: p. 189). Numa distorção grotesca do feminismo, Carmen e Moody afirmam: “Em uma sociedade na qual mulheres estão no limite da igualdade com homens, começando não apenas a gostar de sexo mas a decidir quando e com quem fazê-lo, a prostituta se torna a personificação daquela liberdade que até então era apenas uma fantasia” (Arlene Carmen e Howard Moody, 1985: p. 80). Entretanto, eles expõem seu apoio às vontades sexuais masculinas como medida da liberdade sexual feminina quando descrevem a função básica da prostituição como “...entregar-se para a realização de fantasias de nossos irmãos, pais e filhos...” Pegos de calças curtas, por assim dizer, eles correm de volta para o discurso do liberalismo sexual e ao fazer isso, confundem exploração sexual com escolha sexual, defendendo “o direito da mulher de exercer sua autonomia sexual [que inclui] promiscuidade mercantil” (Arlene Carmen e Howard Moody, 1985: p. 191)
     COYOTE, de Priscilla Alexander, segue nessa linha e nos informa “Independente do que você ou eu pensemos sobre prostituição, mulheres tem o direito de ter a própria opinião sobre trabalhar ou não como prostitutas [incluindo] o direito de trabalhar com um empregador, um terceiro, que pode cuidar de administração e problemas de gestão” (Priscilla Alexander, 1987: p. 211). De fato, a exploração por cafetões é redefinida por Alexander como “uma relação empregador-empregada na qual várias prostitutas entregam parte de ou todos os seus ganhos a um terceiro” (Priscilla Alexander, 1983: p. 13). “Cafetinagem e aliciamento”, COYOTE explica, “são palavras pejorativas usadas para se referir a terceiros que gerenciam prostituição [e como tal] deveriam ser reconhecidos como legítimos negociantes e regulados apenas pelas leis dos negócios e do trabalho, não a lei criminal” (COYOTE/NTFP, 1984-86: p. 3).
     Na tentativa de transformar palha em ouro, o liberalismo sexual argumenta em torno do apoio à prostituição baseado em falsas suposições e mentiras completas. Eles alegam que prostituição é uma manifestação da liberdade sexual da mulher e da igualdade de gênero. Eles alegam que as mulheres escolhem livremente a prostituição como alternativa de carreira. Eles alegam que as mulheres controlam tanto as interações sexuais quanto as financeiras entre elas mesmas e seus clientes. Eles alegam que cafetões são pequeno-empresários que podem e devem ser responsáveis por suas empregadas através de negociações de trabalho.
     Existe aproximadamente um milhão de prostitutas adultas nos Estados Unidos (Charles Winich e Paul Kinsie, 1971: p. 14). Muitas são mulheres negras (Pasqua Scibelli, 1987: p. 120). Muitas têm filhos que dependem delas. A média de idade na qual se entra na prostituição é 14 anos (D. Kelly Weisberg, 1985: p. 94). Outras eram “esposas tradicionais” que escaparam ou foram abandonadas por maridos abusivos e forçadas a se prostituir para sustentar a si mesmas e aos filhos. Além disso, existe aproximadamente um milhão de crianças usadas na indústria do sexo neste país (D. Boyer, 1984). Mesmo que as estimativas variem devido à natureza encoberta da prostituição infantil, nós sabemos que sem intervenção efetiva a maioria dessas crianças vão crescer e se tornar prostitutas adultas.
     Mulheres na prostituição contam com poucos recursos. A maioria não completou o ensino médio.4 Poucas tiveram alguma experiência profissional fora da indústria do sexo.5 A maioria foi vítima de abuso sexual na infância, incesto, estupro e/ou assédio antes de sua entrada na prostituição. WHISPER apontou que a função da instituição da prostituição é permitir que homens tenham acesso sexual incondicional a mulheres e crianças, limitado apenas por seu poder aquisitivo. Uma análise preliminar dos dados coletados pelo Projeto de História Oral de WHISPER isolou táticas culturalmente aceitas de poder e controle que facilitam o recrutamento ou coerção de mulheres e crianças para a prostituição e efetivamente impedem sua fuga. Essas táticas incluem abuso sexual infantil, estupro, assédio, privação educacional, discriminação profissional, pobreza, racismo, classismo, sexismo, heterossexismo, e aplicação desigual da lei. Estas mesmas táticas são usadas por homens individualmente para manter mulheres presas em relacionamentos abusivos fora da prostituição. 
     90% das mulheres que participaram do Projeto de História Oral de WISHPER reportaram ter sido sujeitas a uma excessiva quantidade de abuso físico e sexual durante a infância:  90% haviam sido assediadas por suas famílias; 74% foram sexualmente abusadas entre 3 e 14 anos.7 Deste grupo, 57% foram repetidamente abusadas num período de 5 anos; 43% foram vítimas de dois ou três criminosos; 93% foram abusadas por um membro da família.8 Além disso, 50% deste grupo foram também molestadas por alguém de fora da família (veja, por exemplo, Mimi Silbert, 1982).
     Uma vez na prostituição, essas mulheres e meninas eram vitimizadas tanto por cafetões quanto por clientes. 79% das mulheres entrevistadas foram espancadas por seus cafetões. 74%  reportaram agressões de clientes; destas, 79% reportaram ter sido espancadas por clientes e 50% reportaram estupros. 71% destas mulheres foram vítimas de múltiplas agressões de clientes. (Essas conclusões são compatíveis com Mimi Silbert, 1982; Diana Gray, 1973. As condições as quais essas mulheres foram submetidas na prostituição replicam o abuso que elas sofreram nas mãos de seus pais e maridos. 
__________________
¹Women Hurt In Systems of Prostitution Engaged in Revolt (Mulheres Machucadas em Sistemas de Prostituição Envolvidas em Revolta).
²Prostitutas “de rua”, prostitutas de luxo, ou serviços de acompanhante, saunas, casas de massagem, etc.
³Alexander, que nunca esteve na prostituição, é o diretor e porta-voz do NTFP e COYOTE. Nenhuma das organizações têm membros visíveis ou conselho de diretores. Nenhuma das organizações produziu pesquisas originais para validar suas alegações. Ambas as organizações dividem o mesmo endereço e número de telefone, eu vou assumir que elas são, de fato, o mesmo reflexo da filosofia de Alexander. 
4Mary Magdalene Project, Reseda, Califórnia (1985); Operation De Novo, Minneapolis; WHISPER Oral History Project (1988).
5Council for Prostitution Alternatives, Portland, Oregon; Genesis House, Chicago; WHISPER, Minneapolis; PRIDE, Minneapolis.
6 O Projeto de História Oral é uma pesquisa em andamento projetada para documentar experiências comuns de mulheres usadas na prostituição. Participantes respondera uma única entrevista com duração de 2 a 3 horas que foi transcrita para análise de dados. Conclusões preliminares são baseadas em 19 entrevistas com mulheres com idades entre 19 e 37 anos.
7Destas, 36% foram vítimas de estupro
850% foram abusadas por pais biológicos, adotivos ou padrastos

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