Título original: Beauty and Misogyny: Harmful Cultural Practices in the West
Autora: Sheila Jeffreys
Tradução: Laryssa Azevedo
Sheila Jeffreys é professora adjunta no Departamento de Ciência
Política na Universidade de Melbourne, onde ensina política sexual, políticas
feministas internacionais e políticas gay. Ela é autora de cinco livros sobre
história e política da sexualidade e é ativa no feminismo e nas políticas
feministas lésbicas desde 1973.
INTRODUÇÃO
Nos anos 1970 uma crítica feminista
à maquiagem e outras práticas estéticas emergiu em grupos de conscientização. A
teórica feminista radical Catherine A. MacKinnon chamou de conscientização a
“metodologia” do feminismo (MacKinnon, 1989). Nesses grupos mulheres discutiam
seus sentimentos sobre elas mesmas e seus corpos. Elas identificaram as
pressões da dominância masculina que faziam com que sentissem que deviam
fazer dieta, depilação e usar maquiagem. Escritoras feministas rejeitaram a
estética masculina que fez com que mulheres sentissem que seus corpos eram
inadequados e se engajassem em práticas caras e demoradas que faziam com que
sentissem que perderam sua autenticidade e que eram inaceitáveis de cara lavada
(Dworkin, 1974). “Beleza” era identificada como opressão a mulheres.
Nas últimas duas décadas a
brutalidade das práticas estéticas executadas nos corpos femininos tornou-se
muito mais severa. As práticas atuais requerem a ruptura da pele, derramamento
de sangue e rearranjo ou amputação de partes do corpo. Corpos estranhos, no
formato de implantes para os seios, são colocados embaixo da carne e próximos
ao coração, os lábios vaginais das mulheres são cortados para chegar a um
determinado tamanho, gordura é lipoaspirada das coxas e glúteos e algumas vezes
injetada em outras partes como bochechas e queixos. A nova indústria da
modificação corporal agora divide línguas femininas ao meio, criam buracos nos
mamilos, próximos ao clitóris ou umbigo, para inserção de joias de “arte corporal”
(Jeffreys, 2000). Esses incrementos são muito mais perigosos para a saúde da
mulher do que as práticas comuns nos anos 60 e 70 quando a crítica feminista se
deu. Era de se esperar, dessa forma, que essa crítica estivesse mais afiada e
sua relevância fosse renovada em resposta ao coordenado ataque à integridade
dos corpos das mulheres. Mas isso não aconteceu. Ao invés disso, a perspectiva
feminista, que fez muitos milhares de mulheres evitarem a cultura da beleza e
seus produtos foi desafiada nos anos 80 e 90.
O desafio veio de duas direções.
Feministas liberais, como Natasha Walter (Reino Unido) e Karen Lehrman (EUA),
argumentaram que não havia nada errado com batom ou mulheres ficando mais
bonitas com todos os produtos e práticas da cultura da beleza (Walter, 1999;
Lehrman, 1997). O feminismo mesmo havia criado a escolha para mulheres, segundo
elas, e permitiram às mulheres “escolher” o batom, que antes era imposto a
elas. Enquanto isso, a influência de ideias pós-modernas na academia levaram a
discursos similares sobre “escolha”, geralmente na forma de “agência” vinda de
algumas teóricas feministas e pesquisadoras (Davis, 1995). Proposições mais
ousadas também foram feitas, como a ideia de que práticas de beleza poderiam
ser socialmente transformadoras. Teóricas do feminismo pós-moderno como Judith
Butler (1990), com suas ideias de performance de gênero, inspiradas na noção
difundida entre teóricos queer de que
as práticas de beleza da feminilidade adotadas por atores não convencionais ou
escandalosamente poderiam ser transgressoras (Grosz, 1994). É em resposta a
essa recente defesa das práticas de beleza contra a crítica feminista que este
livro foi escrito.
Em Beleza e Misoginia, eu sugiro que práticas de beleza não são sobre
escolhas individuais das mulheres ou um “espaço discursivo” para a expressão
criativa das mulheres mas, como outras teóricas feministas radicais
argumentaram antes de mim, o mais importante aspecto da opressão contra a
mulher. A filósofa feminista Marilyn Frye escreveu incisivamente sobre o que
torna uma teoria feminista e por que não é suficiente contar com a certeza
individual de mulheres que uma prática está ok para elas e para seus
interesses.
Um dos grandes poderes do feminismo é
que ele torna as experiências e vidas das mulheres inteligíveis. Tentar
explicar os sentimentos, motivações, desejos, ambições, ações e reações de uma
mulher sem levar em consideração as forças que mantêm a subordinação das
mulheres em relação aos homens é como tentar explicar por que uma bolinha de
gude para de rolar sem levar o atrito em consideração. A teoria feminista é
sobre, de maneira geral, identificar essas forças somente... e mostrar a
mecânica de suas aplicações nas mulheres como um grupo (ou casta) e para
mulheres individualmente. A medida do sucesso da teoria é somente o quanto se
pode explicar sobre o que não fazia sentido antes.
(Frye, 1983, p. xi)
Neste livro eu tento identificar algumas das “forças
que mantêm a subordinação das mulheres em relação aos homens” relacionadas a
práticas de beleza.
Procuro explicar por que as práticas de beleza
permanecem não apenas universalizadas 30 anos depois da crítica feminista ser
feita, mas de muitas maneiras, mais extremas. Para isso eu uso algumas
abordagens novas feitas para explicar essa intensificação da crueldade no que é
esperado de mulheres no século XXI. Um ímpeto por trás da escrita deste livro é
minha crescente impaciência para o viés ocidental do construtivo conceito de
“práticas tradicionais/culturais nocivas”. Nos documentos das Nações Unidas
(ONU) como o documento sobre “Práticas Tradicionais Nocivas” (ONU, 1995),
práticas culturais/tradicionais nocivas são entendidas como prejudiciais à
saúde das mulheres e adolescentes, realizadas para benefício masculino,
criadoras de papéis sexuais estereotipados e justificáveis por tradição. Esse
conceito é uma boa lente através da qual se pode examinar práticas que são nocivas a
mulheres ocidentais – como práticas de beleza. Entretanto, práticas ocidentais
não estão incluídas na definição ou entendidas pelas políticas feministas
internacionais dessa forma. De fato há um pronunciado viés ocidental na seleção
de práticas que se encaixam nessa categoria, entre as quais apenas uma prática
ocidental, violência contra a mulher, está incluída (Wynter et al., 2002). O pressuposto é de que as
culturas ocidentais não possuem práticas danosas, como mutilação genital, que
poderiam gerar preocupação. Eu demonstro, em Beleza e Misoginia que práticas de beleza ocidentais, do batom à
labioplastia se enquadram no critério e deviam estar incluídas na compreensão
da ONU. A grande utilidade dessa abordagem é que ela não depende de noções de
escolha individual; ela reconhece que atitudes por trás de práticas culturais
danosas têm poder coercitivo e podem e devem ser modificadas.
Outra abordagem que uso é enxergar o envolvimento
masculino de duas formas nas práticas de beleza associadas a feminilidade: na
travestilidade/transsexualidade, e no papel de designers e fotógrafos da
indústria da moda. Neste livro estão pistas úteis sobre os significados
culturais das práticas de beleza feminina, e formas nas quais são reforçadas,
obtidas da análise do comportamento de homens que as praticam e de homens que
as projetam. Eu utilizo percepções vindas de pesquisas em livros e na Internet
sobre homens que obtém excitação sexual apropriando-se da feminilidade. Ao
longo das décadas, desde os anos 70, as práticas masculinas de
travestilidade/transsexualidade, que são a apropriação de roupas ou partes do
corpo geralmente relacionadas a membros da classe sexual subordinada à
supremacia masculina, ganharam extensa exposição pública e influência. A Internet permitiu que websites de
praticantes individuais e grupos de apoio, bem como sites comerciais e
pornografia direcionada a essas práticas masculinas proliferassem. Essa é uma
boa oportunidade de demonstrar que práticas de beleza “feminina” não são nem
naturais, nem exclusivas das mulheres. Também fornece muitas informações úteis
sobre o que tais práticas representam para os homens, a excitação sexual
causada pela subordinação ritualizada. Eu uso tais websites em alguns capítulos, analisando a criação da feminilidade
por homens ou “transfeminilidade”. Com a percepção que tamanha análise oferece,
argumento que essa prática masculina influencia na construção de práticas de
beleza nocivas para mulheres através da influência de estilistas homens,
fotógrafos e maquiadores que têm interesse em transfeminilidade.
Outra abordagem que uso para investigar práticas de
beleza é a análise da influência das indústrias da pornografia e da
prostituição em sua criação. Sugiro que no final do século XX, o crescimento
dessas indústrias teve um considerável efeito nas práticas de beleza exigidas a
mulheres. Conforme essas indústrias cresceram e ganharam respeito através do
desenvolvimento de novas tecnologias, como a Internet, e políticas
governamentais indiferentes, as exigências culturais para a construção da
beleza mudaram. O estigma da objetificação sexual à venda transformou-se em
regra na indústria da moda. As pressões da pornografia criaram novas normas da
moda para mulheres em geral, como implantes de silicone nos seios, depilação
genital, alteração cirúrgica dos lábios vaginais, aparatos sadomasoquistas em
forma de couro preto e vinil, e a exibição crescente do corpo, incluindo seios
nus e nádegas.
Beleza e Misoginia é concluído com um capítulo
sobre o grau dos sérios danos físicos às mulheres e algumas categorias de
homens que agora se normalizaram através da indústria do sexo e da celebração
na arte e nos círculos da moda e através de redes online. Esse dano, eu sugiro, precisa ser entendido como
automutilação passiva. Inclui a cirurgia cosmética, na qual o agente é o
cirurgião plástico, e a indústria da modificação corporal, na qual os agentes
são encontrados em estúdios de piercing.
A partir dos anos 90, passaram a ser incluídas práticas extremamente severas
como amputação, cujos agentes são cirurgiões, e outras práticas de
sadomasoquismo nas quais partes do corpo são removidas. Algumas dessas práticas
são sofridas por categorias vulneráveis de homens gays, bem como por mulheres.
Não parece haver um limite para as variações de modificações corporais que membros da medicina estão preparados para realizar em troca de lucro. A defesa
do “consentimento” da vítima está sendo empregada em circunstâncias tão dúbias
que toda a noção de consentimento deve ser questionada. Meu argumento é que,
consentimento à parte, limites deveriam ser construídos para conter os ataques
à integridade dos corpos das mulheres e de alguns homens em nome da beleza ou
da insatisfação com a aparência que estão ganhando espaço no início do século
XXI.
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