terça-feira, 28 de junho de 2016

[CAPÍTULO 1, PARTE 2] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

O PESSOAL É POLÍTICO
     A crítica feminista à beleza começa pelo entendimento de que o pessoal é político. Enquanto feministas liberais tendem a enxergar a esfera da vida “privada” como uma área na qual mulheres podem exercer o poder de escolha livre da política, feministas radicais como Dworkin e MacKinnon procuram romper a distinção público/privado a qual, elas argumentam, é fundamental à supremacia masculina. Essa distinção dá aos homens um mundo privado de dominação masculina no qual eles podem encarcerar energias emocionais, de trabalho doméstico, sexuais e reprodutivas das mulheres enquanto escondem as relações feudais de poder dessa esfera sob o escudo de proteção da “privacidade”. O mundo privado é defendido pelo ponto de vista da dominação masculina como o do “amor” e realização individual que não deve ser maculado pela análise política. É um mundo no qual mulheres simplesmente “escolhem” colocar suas energias e corpos à disposição dos homens, onde elas permanecem, apesar de qualquer violência ou abuso. A natureza “privada” deste mundo protegeu os homens de punição por um longo tempo pois ele era visto como fora da lei que se aplica apenas no mundo público. Assim, o estupro no casamento não era um crime segundo essa visão, e violência doméstica era apenas uma controvérsia pessoal.
     Críticas feministas radicais argumentam que, pelo contrário, o “pessoal”; isto é, os comportamentos desse mundo “privado”, era, na verdade, “político”. Reconhecer o “pessoal como político” permitiu que mulheres identificassem, através de grupos de conscientização e troca de experiências, que o que elas consideravam ser suas próprias falhas pessoais, como odiar suas barrigas gordas ou fingir dor de cabeça quando queriam evitar intercurso sexual sem que seu parceiro ficasse com raiva, não eram apenas experiências individuais. Eram experiências comuns entre mulheres, construídas a partir das relações desiguais de poder do chamado mundo “privado”, e muito políticas na verdade. O mundo “privado” foi reconhecido como base do poder que os homens exibiam no mundo “público” do trabalho e do governo. O poder público e realizações dos homens, seu status de cidadania (Lister, 1997), dependiam dos serviços que recebiam das mulheres em casa. As mulheres não apenas forneciam esse pano de fundo vital à dominância masculina como não contavam com uma classe de pessoas que fizessem o mesmo por elas, dessa forma elas estavam em dupla desvantagem na esfera pública em comparação com os homens. O conceito de que o pessoal é político permitiu que as feministas entendessem as formas pelas quais os mecanismos de dominância masculina penetravam em suas relações com homens. Elas puderam reconhecer como a dinâmica de poder da dominância masculina transformou a heterossexualidade em uma instituição política (Rich, 1993), construiu a sexualidade masculina e feminina (Jeffreys, 1990; Holland et al., 1998) e os sentimentos das mulheres sobre seus corpos e sobre elas mesmas (Bordo, 1993).

“NOVO” FEMINISMO

     O feminismo radical, que identificou os mecanismos de dominância masculina nas vidas de mulheres, sempre foi antagonizado por variedades do feminismo que buscavam privatizar e despolitizar a sexualidade e as práticas de beleza. Nos anos 80, por exemplo, havia um movimento para  isolar a sexualidade da crítica feminista radical tanto por feministas “liberais” como por feministas socialistas (Vance, 1984). Nos anos 90 houve uma onda de publicações de editoras mainstream, que não estavam tão entusiasmadas para publicar trabalhos feministas radicais, de livros que diziam incorporar um feminismo “novo”, “poderoso” ou “sexy”  (Wolf, 1993; Roiphe, 1993). Esses livros tinham em comum o repúdio furioso ao feminismo radical e à noção de que o pessoal era político. Eles buscavam a despolitização radical do sexo e da vida “pessoal”. O “novo” feminismo argumentava que as mulheres haviam atingido enormes avanços no final do século XX em direção a oportunidades iguais as dos homens no mundo público do trabalho. Esse “novo” feminismo foi influenciado pelo individualismo liberal americano radical como mostra um livro de 1986 que argumentava que a “justiça de gênero” somente poderia ser atingida completamente através da facilitação das escolhas das mulheres com a remoção de barreiras para que “indivíduos tivessem a oportunidade de escolher” (Krip et al., 1986, p. 133). No “novo” feminismo as vidas privadas das mulheres eram simplesmente o resultado da “escolha” e deveriam estar fora dos limites da análise ou ação feminista.
     Um exemplo britânico dessas “novas” feministas é Natasha Walter. Ela explica que pode aprender com “ícones culturais” como Madonna sobre a independência e a sexualidade das mulheres. A contribuição de Madonna na criação de um novo e sexualizado feminismo coberto por costumes e práticas da pornografia será discutida mais adiante. O “novo feminismo” de Walter é baseado na firme reafirmação da linha entre o pessoal e o político. O pessoal, que deveria ser isento da crítica política, cobriu “vestido e pornografia”. O problema com o feminismo, ela diz, é que ele “buscou direcionar nossas vidas pessoais em todos os níveis” (Walter, 1999, p. 4) e esse “novo feminismo deve desfazer a estreita ligação que o feminismo nos anos 70 fez entre nossas vidas pessoais e políticas” (p. 4). Mulheres estavam agora livres em suas vidas pessoais pois “A maioria das mulheres se sente livre, mais livre do que suas mães se sentiam. A maioria das mulheres pode escolher o que vestir, com quem passar sua vida, onde trabalhar, o que ler, quando ter filhos” (1999, p. 10). Ela concorda com Naomi Wolf (1993) que o que as mulheres realmente precisam é o “poder” que vem quando elas ganham mais. Quando elas tiverem “poder” elas irão aparentemente manter o desejo de “passar o tempo depilando suas pernas ou pintando as unhas” (Walter, 1999, p. 86) mas as feministas se sentirão mais “relaxadas” quanto a isso. Mulheres vão poder tolerar a “real, muitas vezes perversamente agradável relação que elas tem com suas roupas e seus corpos” sem que sejam obrigadas a se sentirem culpadas pelo feminismo puritano (p. 86). Em relação a beleza, Walter tem uma visão similar a dos libertários americanos acima, “Respeito pela escolha individual, embora suas origens sejam misteriosas, é uma condição necessária à justiça social” (Krip et al., 1986, p. 15). Em outras palavras o contexto no qual as “escolhas” são feitas é menos importante do que a oportunidade de explorá-las. Evitar a interrogação racional sobre o mistério de tais “escolhas” e prazeres ao qual a maioria dos homens parece ser impune, e o que elas podem significar para as vidas das mulheres, transforma as práticas de beleza em um aspecto do mundo natural além do interesse político.
     O equivalente americano a esse tipo de feminismo liberal é The Lipstick Proviso (A condição do batom) (1997), de Karen Lehrman, que argumenta que maquiagem é totalmente compatível com feminismo. Lehrman considera que houve um retorno à feminilidade nos Estados Unidos, tal que “Nos anos recentes muitas mulheres também retornaram a práticas que foram pensadas para subsidiar a opressão masculina. Elas estão vestindo roupas provocativas e saltos altos novamente, pintando seus rostos e unhas, tratando sua pele e cabelos de acordo com os mais recentes estilos e novidades” (1997, p. 8). Feministas, ela diz, precisam aprender a respeitar as escolhas das mulheres – de vestir sensuais vestidos Galliano a permanecer em casa para criar seus filhos” (1997, p. 13). Ela culpa a falha das mulheres em exercitar seu poder pessoal por sua opressão. Mulheres deveriam parar de se autodestruir e parar de se fazer de vítimas (p. 41). Beleza, ela diz, é “uma realidade, um presente de Deus, da natureza ou de um gênio que, em certa medida, transcende a cultura e a história” (p. 68). Alinhada a sexólogos e sociobiólogos tradicionais ela argumenta que mulheres e homens merecem a beleza porque ela é necessária à reprodução. Mulheres querem ser escolhidas, e homens são programados para escolher mulheres “lindas”. Lehrman sugere que “beleza”, em forma de sensualidade, dá às mulheres poder que elas podem usar para progredir. O poder deriva de “vestir roupas sensuais”. As mulheres “se enfeitam” ela diz, “porque a sexualidade é uma forma de poder, uma força, um recurso... A diferença agora é que ela não é o único poder das mulheres” (1997, p. 94). Mulheres não são, ela afirma, “vitimizadas por dietas, exercício, modelos de beleza, designers de moda, saltos altos, maquiagem, elogios” (p. 23). O problema para as mulheres, surpreendentemente, é que há uma intromissão na santidade de suas vidas pessoais, não apenas pelo governo mas por algo chamado “sociedade” que “inclui as teóricas feministas” (p.23).

     O livro The Survival of the Prettiest (A sobrevivência das mais bonitas)(2000) de Nancy Etcoff, expressa sentimentos quase idênticos. A beleza é inevitável e universal, um “instinto básico” (Etcoff, 2000, p. 7). Etcoff tem um cruel diagnóstico para aqueles, como as críticas feministas da beleza, que falham em responder a “beleza física”. Essa falta de resposta é “um sinal de intensa depressão” (2000, p. 8). Homens inevitavelmente respondem a “jovens atraentes” por causa de um “imperativo reprodutivo”. Ela concorda com Lehrman que mulheres podem atingir “poder” através de práticas de beleza porque “é possível que mulheres possam cultivar a beleza e usar a indústria da beleza para otimizar o poder que a beleza traz, não?” (Etcoff, p. 4). Essas feministas liberais não reconhecem as forças que restringem e podem até eliminar o poder de escolha das mulheres. Elas não consideram as limitações do “prazer” e do “poder” que as práticas de beleza oferecem, ou as maneiras com as quais contribuem para a condição de subordinação das mulheres. Assim elas podem proteger a permanência da objetificação sexual de mulheres na cultura.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Você ouviu falar da cultura do estupro, mas já ouviu falar da cultura da pedofilia?

Título original: You've heard of rape culture, but have you heard of pedophile culture?
Autora: Alicen Grey
Disponível em: http://goo.gl/huQCAK
Tradução: Laryssa Azevedo

     Querido Todd Nickerson,
     Em Salon, alguns dias atrás, você escreveu um artigo provocativamente intitulado “Eu sou um pedófilo, mas não um monstro.” Presumivelmente, muitas pessoas agora estão fazendo perguntas como “Seria pedofilia natural?” ou “A pedofilia pode ser curada?” Mas eu não vou tentar responder essas questões em particular. Ao invés disso, eu gostaria de ampliar essa conversa preenchendo alguns buracos em seu artigo.
     Vamos começar com essa peça que falta: a vasta maioria dos pedófilos são homens. E a maioria das crianças vítimas desses pedófilos que escolhem agir a respeito de seus desejos sexuais são meninas. Esse é um grande detalhe para esconder de sua audiência, você não acha? Infelizmente, por mais universal e evidente assim como o patriarcado, esse é geralmente o último detalhe mencionado em conversas dessa natureza – isso se for mencionado.
     Dito isso, pedofilia pode parecer um tabu e ser desprezada pelas massas, mas uma avaliação honesta de nossa cultura de forma geral revela o oposto. Eu sugiro que a pedofilia é na verdade recompensada e celebrada, e que toda a nossa cultura e entendimento sobre sexualidade são construídos sobre o que parecem ser desejos pedófilos. Eu chamo isso de “cultura da pedofilia.”
Na cultura da pedofilia, a categoria mais acessada do Pornhub (site de vídeos pornográficos) é “Teen” (Adolescentes). “Meninas” “Barely legal” (que acabaram de fazer dezoito anos, no limite da maioridade) em roupas de colegial interpretam de tudo, de “virgens manipuladas” a fantasias de incesto entre pai e filha, simulações de professor e aluna... se você pode imaginar, existe pornô pra isso, e foi visto milhões e milhões de vezes. É justo imaginar se a única coisa que impede alguns desses espectadores de assistir pornografia infantil são as leis de idade de consentimento.
     Influenciada pela indústria pornográfica, labioplastia, uma cirurgia que “esculpe” os pequenos lábios para caber no padrão minúsculo do pornô, está ganhando popularidade rapidamente. Assim como outros procedimentos, como himenoplastia, que restaura nas mulheres a forma apertada das vaginas de virgens.
     Na cultura da pedofilia, mulheres são absolutamente pressionadas a raspar ou depilar regularmente sua região íntima e axilas. A indústria cosmética – novamente, visando mulheres – vende cremes e loções “anti-idade” que tornarão sua pele “macia como de bebê!”
     Na cultura da pedofilia, nós casualmente nos referimos a mulheres adultas como “meninas.” Nós temos uma palavra específica para meninas adolescentes atraentes: jailbait. Mulheres são sexualizadas como chicks, kittens, e babes.  
     Na cultura da pedofilia, eu frequentemente flagro homens em público me encarando cheios de luxúria, até que eles percebem os pelos em minhas pernas – nesse momento, eles recorrem a manifestações teatrais de nojo. Eu ouvi por acaso grupos de rapazes jovens conversando sobre como eles não iriam fazer sexo oral em uma mulher se os lábios dela fossem muito proeminentes. Um homem que tentava fazer sexo comigo havia três anos, de repente mudou de ideia quando eu revelei que não depilo e não depilarei meus pelos pubianos. Em outras palavras, muitos homens deixaram de se sentir atraídos por mim quando eu os lembrei que sou uma mulher e não uma garotinha.
     Com certeza todos esses homens, que têm “preferência” pelas qualidades mencionadas acima numa mulher, não são pedófilos no sentido literal da palavra. Mas parece que um grande número deles, provavelmente como resultado de profundo condicionamento cultural, acham atraentes em uma mulher muitas das mesmas coisas que um pedófilo acha em uma garotinha. Lábios pequenos, vaginas apertadas, hímens intactos, pele macia como de bebê, braços, pernas e vulvas sem pelos, juventude eterna, pequenos e frágeis corpos... Como o usuário do tumblr reddressalert escreveu, “como nós não reconhecemos que essa é essencialmente a descrição de um bebê ou criança?”
     De volta ao ponto:
     Eu preciso que você, e seus leitores simpatizantes, entendam essa grave verdade: pedofilia não está nem perto de ser tabu, ou vergonhoso, ou repulsivo para a sociedade, como você alega que é. Eu gostaria que fosse. Muito em detrimento das mulheres pelo mundo afora, seus desejos são refletidos de volta para você infinitamente, produzidos em massa em escala global para encontrar uma crescente demanda. Esse mundo de supremacia masculina te recebe de braços abertos, e todos os seus desejos são ordens. Eu ouso dizer que você está mais seguro sendo você do que as meninas estão.
Você diz “Eu sou um pedófilo, mas não um monstro,” e eu concordo de coração com você. Você não é um monstro – você é um homem. Um homem muito comum. Uma representação microcósmica das perversões mais prevalentes do patriarcado. Você não é especial, você não é uma anomalia e você não está sozinho. Nem perto disso. Sua “orientação sexual” é apenas outra manifestação do desejo coletivo dos homens de subjugar as mulheres numa cruzada para manter a supremacia masculina a qualquer custo.

Então se “compreender e apoiar” sua pedofilia implica incentivar homens a erotizar características infantis em mulheres, e ensiná-las a manter a juventude eterna para não agravar suas inseguranças masculinas, então você não está pedindo por apoio – você está pedindo submissão. E assim como você diz “não existe uma maneira ética para que nós possamos realizar nossos desejos sexuais,” não existe uma maneira ética de pedir cooperação daquelas de nós que estão ativamente tentando destruir o sistema patriarcal que sua “orientação” representa.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Confrontando as Mentiras Liberais Sobre Prostituição - Evelina Giobbe (1990) PARTE II

     Carmen e Moody tentam livrar a cara dos cafetões apresentando um perfil pseudopsicológico desses homens. O que é realmente importante, eles escrevem, “é a autoimagem do homem, a forma com que ele percebe a si mesmo no relacionamento com a prostituta(...) Ele não se vê como um senhor de escravas mulheres; ao invés disso ele se considera um empresário(...) Ele gerencia um pequeno negócio.” E, conforme a leitura, entendemos que, em seus negócios “ele geralmente escolhe pagar a mulher com bens e serviços ao invés de com dinheiro” (Arlene Carmen e Howard Moody, 1985: pp. 107-108). Isso é equivalente a tentar construir uma análise do assédio sexual perguntando como o criminoso condenado percebe a si mesmo em sai relação com a vítima: ele não se vê como um estuprador; ele acha que está amando.
     Explicando como os cafetões são vistos pela sociedade, Carmen e Moody escrevem, “A categoria dos cafetões sofre enquanto seres humanos o mesmo destino de outros membros de pessoas fora do padrão ou minorias subculturais” (Arlene Carmen and Howard Moody, 1985: pp. 100). Eles alegam que 99% dos cafetões são negros e reforçam esse equívoco apresentando uma visão racista/misógina da história. “Em tempos de escravidão,” eles afirmam, “senhores brancos estupraram mulheres negras e saíram impunes.” Entretanto, eles adicionam, “algumas mulheres negras cooperaram com os senhores brancos para ganhar espaços mais seguros.” Desconsiderando os horrores específicos ao gênero aos quais mulheres escravizadas eram submetidas, incluindo gravidez forçada, e rotulando-as como colaboradoras com a própria opressão, Carmen e Moody rapidamente avançam para o que eles entendem como a real degradação da escravidão: “Senhores brancos castravam socialmente homens negros não permitindo que estes fossem os chefes de suas próprias famílias e negando seu acesso a mulheres brancas.” Para Carmen e Moody, a cafetinagem de mulheres por homens negros repara esse erro histórico. “O cafetão negro inverteu a história,” eles explicam. “Ele domina a mulher negra e a branca e também humilha o homem branco fazendo-o pagar pelo que suas mulheres generosamente dão ao homem negro” (Arlene Carmen and Howard Moody, 1985: pp. 106-107).
     Esse paradigma racista que define cafetões como homens negros movidos pela vingança sexual histórica, aparentemente porque foram privados de acesso sexual incondicional tanto a mulheres negras quanto a brancas, desvia a atenção do tráfico organizado de mulheres possuído e controlado por homens de negócio brancos na América – donos de bordéis em Nevada9; donos de cassas de massagens e de serviços de acompanhantes ao longo dos Estados Unidos; donos e gerentes de bares, boates e “estúdios de dança” onde se promove prostituição;10 donos de negócios de “noivas por correspondência”; organizações criminosas que operam em conluio com exércitos americanos para persuadir mulheres asiáticas a virem para seu país e aprisioná-las em casas de massagem (Sindicato do Crime, 1985: p. A1, A2);  pornógrafos e dono de “peep shows” e “shows de sexo ao vivo”;12 e autoproclamados revolucionários de esquerda que levaram suas companheiras a prostituição nos anos 60 e 70. Ao fingir preocupação com o status socioeconômico subordinado dos homens negros na América, os liberais sexuais apontam para um cafetão individualmente, absolvendo a si mesmos da culpa. Além do mais seu retrato do típico cafetão americano é falso. Convenientemente omitidos de sua figura estão os maridos que cafetinam suas esposas e pais que cafetinam suas filhas. Uma sobrevivente da prostituição descreveu como seu padrasto a forçou a entrar na prostituição aos 11 anos.
Ele me vendia a seus amigos de bar... nós dirigíamos até um bar e então ele entrava no bar enquanto eu era deixada no carro e ele trazia seus amigos para o carro. (WHISPER, 1987)
     Tais cenários de cafetinagem, comumente interracial, são ignorados tanto na literatura popular quanto na acadêmica. Além disso a família, sob o controle do pai, é mantida isenta de culpa pela escravização sexual de mulheres e meninas na esfera pública e na privada. Isso não é coincidência. É por isso que a família serve como uma área de treinamento para a prostituição. É pelo interesse dos defensores do liberalismo sexual, em sua maioria maridos e/ou pais, que essa instituição é mantida intacta. Eles protegem a família através da execução de leis de proteção à privacidade, que previnem quaisquer interferências na absoluta autoridade masculina na casa, assim como protegem seu direito de comercializar mulheres através da pornografia em público.
     Na tentativa de absolver homens de qualquer responsabilidade pelo comércio de mulheres, Carmen e Moody argumentam que é “[mito] ser a cafetinagem a razão primária de mulheres estarem ‘na vida’” (Arlene Carmen and Howard Moody, 1985: p. 101). Alegando falar pelas prostitutas, eles afirmam “...as mulheres frequentemente escolhem o homem para o qual dar seu dinheiro... mulheres largam um cafetão para ficar com outro. Ou uma mulher sem homem decide trabalhar pelo cafetão que prefere” (1985: p. 104). Alexander vai mais longe alegando que “meninas jovens (fugitivas) deliberadamente vão às grandes cidades para achar cafetões para introduzi-las na prostituição” (1985: p. 10).
     Essas duas teorias que culpabilizam a vítima ignoram as técnicas de manipulação utilizadas por cafetões para recrutar mulheres e meninas para a prostituição, por exemplo, visando mulheres emocionalmente e/ou economicamente vulneráveis, adquirindo sua confiança e dependência ao fingir amor e amizade e praticando abuso físico ou sexual (Kathleen Barry, 1981: pp. 121-122). Eles não consideram o fato de que prostitutas que não têm cafetões são consideradas “foragidas”. Porque uma “foragida” não é propriedade de um cafetão, ela está disponível para todos os cafetões. Também ignorado é o fato de cafetões trocarem mulheres entre si e as “roubarem” uns dos outros. Em uma investigação preliminar, o Projeto de História Oral de WHISPER apurou que todas as mulheres entrevistadas até então haviam sido assediadas, agredidas, estupradas, sequestradas e/ou forçadas a se prostituir por um cafetão ou gangue de cafetões. Que o fato de algumas mulheres terem cafetões no momento da agressão não dissuadiu outros cafetões de atacá-las.
     Apesar dessa realidade, Carmen e Moody retratam cafetões como seres benignos. “O cafetão,” eles escrevem, “desempenha um papel multifacetado na relação com sua(...) mulher (...)[como] pai, corrigindo sua filha desobediente(...)[como] irmão(...)[como] amante. Talvez o papel mais importante seja assumido quando(...) ele desempenha papel de marido.” Eles alegam, “Ele é desejável porque ela acredita que ele será um bom provedor que dará a ela o que ela precisa (...) e as coisas que ela deseja(...) e que ele lhe dará o maior presente – ele a deixará carregar o filho dele.” Culpando a mulher, eles afirmam “Na subcultura da prostituição o homem ainda é rei enquanto a mulher é uma serviçal submissa, embora na maioria das vezes queira isso” (Arlene Carmen e Howard Moody, 1985: p. 126).
     O que Carmen e Moody acabam de descrever é a família patriarcal tradicional, e fazendo isso, eles involuntariamente expuseram a verdade sobre a prostituição. Prostituição é ensinada em casa, validada socialmente por uma ideologia de libertação sexual, e reforçada tanto pela igreja quanto pelo Estado. Isso é dizer que as hierarquias masculinas tanto da direita conservadora quanto da esquerda liberal conspiram para ensinar e manter mulheres na prostituição: a direita exigindo que mulheres sejam social e sexualmente subordinadas a um homem no casamento, e a direita exigindo que as mulheres sejam social e sexualmente subordinadas a todos os homens na prostituição e pornografia. Seu objetivo comum é manter seu poder para si mesmos e controlar as mulheres tanto na esfera pública quanto na privada.
     Prostituição não é como qualquer outra coisa. Pelo contrário, qualquer outra coisa é como prostituição porque esse é o modelo da condição feminina. A linha entre esposa e prostituta – Madonna e vadia – tornou-se cada vez mais tênue, começando nos anos 60 quando as tentativas das mulheres de se libertarem dos dois pesos e duas medidas foi frustrada pela adoção e promoção por parte da esquerda liberal da “Filosofia Playboy.” Isso resultou na substituição dos dois pesos e duas medidas pelo padrão de um só homem, no qual libertação sexual se tornou sinônimo de objetificação sexual masculina e acesso sexual incondicional a mulheres. Com a invasão das casas pelos canais à cabo de pornografia e videocassetes, a “boa esposa” se tornou equivalente à “boa vadia,” conforme mais e mais mulheres foram pressionadas a emular os cenários da pornografia. Nesse contexto, a esposa é pressionada, seduzida e/ou forçada a fazer o papel de prostituta enquanto seu marido adota o papel de “cliente.” Concursos promovidos por pornógrafos como Hustler’s “Beaver Hunt”13 e boletins informativos pornográficos de computador como High Society’s “Sex-Tex,”14 resultaram na proliferação da pornografia caseira. Nessa situação a esposa é compelida a assumir o papel de “porn Queen” (mulher que aparece em mídias pornográficas) enquanto seu marido adota o papel de pornógrafo. O creascimento de “revistas de swingers” e “clubes de troca de esposas” permitiram que homens assumissem simultaneamente o papel de cliente e cafetão, pagando pelo uso da esposa de outro parceiro e disponibilizando sua esposa para troca. A última barreira separando os papéis de esposa e prostituta é destruída quando homens promovem encontros com prostitutas que incluem suas esposas. Uma sobrevivente da prostituição descreve a dinâmica de tal experiência:
Muitos homens gostavam de me levar em encontros com suas esposas. Usualmente o que acabava acontecendo é assistirmos um filme pornográfico e então ele dizia, “Tudo bem, eu quero que você faça aquilo com a minha esposa.” Então, nessas circunstâncias, eu sentia que a esposa era a vítima, e que eu estava ali para machucá-la. Eu sentia que havia um real jogo de poder ali, onde o homem estava obviamente dizendo para a esposa, “Se você não fizer isso, eu vou te deixar.” Quer dizer, haviam nuances de manipulação e coerção. (WHISPER, 1988)
     Em cada uma dessas formas a prostituta simboliza o valor do homem na sociedade. Ela é o paradigma da subordinação social, sexual e econômica das mulheres na qual seus status é a unidade básica pela qual o valor dos homens é medido e pela qual todas as mulheres podem ser reduzidas. O tratamento que um homem dá às mulheres mais desprezadas – as prostitutas – define o padrão segundo o qual ele deve tratar as mulheres sob seu controle – sua esposa e filhas.
     O papel da prostituta é imposto nas mulheres em casa quando os tribunais isentam o estupro dentro do casamento do código penal. Essas leis codificam o imperativo moral da igreja que demanda que as mulheres estejam incondicionalmente disponíveis sexualmente a seus maridos.  Através dessa vitimização legalmente sancionada, o Estado apoia o direito do homem ao impacto emocional e físico nela, baseado num contrato social (casamento) que assume o consentimento formal da parte da esposa. Essa mesma lógica tem sido usada contra prostitutas que tentaram prestar queixa contra clientes que as agrediram sexualmente. Um tribunal na Califórnia recentemente decidiu a favor de um cliente acusado de estuprar uma prostituta, sob alegação de que os tribunais “não estavam em posição de julgar brechas em contratos ilegais” (LA Times, 1986: pp. 1,7).
     O papel da prostituta é ensinado a meninas em casa através do abuso sexual paterno. O fato de que estima-se que 75% das mulheres na indústria do sexo foram abusadas sexualmente quando crianças sugere que as ramificações do incesto e da agressão sexual na infância contribuíram para o recrutamento de mulheres e crianças para a prostituição.15 Uma sobrevivente afirma:
Eu acredito que me tornei prostituta por causa do abuso físico que experienciei na infância. Isso fez com que homens me intimidassem e assustassem, e eu era facilmente manipulada por homens. Eu também acredito que outro fator responsável em grande parte por meu envolvimento com a prostituição foi o abuso sexual que sofri muito jovem, aos 12 anos (...) e foram como três baques que aconteceram – boom, boom boom – que me fizeram saber que não foi apenas um incidente isolado. (WHISPER, 1988)
     O papel da prostituta é ensinado para mulheres individualmente e como classe, através da aprovação social da exploração sexual comercial de mulheres por pornógrafos, que mantém nosso status de segunda-classe e ainda assim tenta ser vendido pelo liberalismo sexual como liberdade sexual da mulher. Dados preliminares coletados pelo Projeto de História Oral de WHISPER refutam o argumento do liberalismo sexual de que a pornografia é uma inofensiva fantasia ou entretenimento sexual libertados, sugerindo, ao invés disso, que a pornografia é um importante fator no aliciamento de mulheres na prostituição. 52% das mulheres entrevistadas revelaram que a pornografia desempenhou um papel significante ao ensiná-las o que era esperado delas enquanto prostitutas. 30% reportaram que seus cafetões regularmente as expunham à material pornográfico para doutriná-las a aceitas as práticas retratadas. Uma sobrevivente explicou:
Ele usou pornografia para me dar os modelos a serem seguidos, sabe, mulheres para reproduzir e retratar. Ele dizia, “É assim que eu quero que você se pareça” (WHISPER, 1987)
     A situação é misturada ao uso da pornografia por clientes. 80% das sobreviventes reportaram que seus clientes mostravam pornografia a elas para ilustrar os tipos de atividades sexuais nas quais eles gostariam de se envolver, incluindo sadomasoquismo, servidão, sexo anal, micção ou defecação, e a depilação dos pelos pubianos para dar a impressão de pré-adolescência. Essa informação é consistente com o testemunho dado por sobreviventes da prostituição em audiências públicas e antes de comissões de apuração de fatos.
Pornografia era nossa cartilha. Nós aprendemos os truques do ofício quando homens nos expunham à pornografia e quando tentávamos imitar o que víamos. Eu não consigo colocar em palavras a enorme influência que sentimos que isso teve.16
     53% das entrevistadas reportaram que seus clientes tiravam fotos pornográficas delas além de ter relações sexuais.17 Uma investigação seguinte é necessária para apurar se o uso do material pornográfico é um fator comum na manipulação de mulheres para a prostituição; se clientes rotineiramente exigiam que prostitutas se envolvessem em práticas sexuais promovidas pela pornografia; se a pornografia foi um modelo para prostitutas compelidas por clientes a replicar certos cenários retratados em material pornográfico; e se a pornografia molda o senso próprio das mulheres compelidas a posar para fotos pornográficas e filmes como função da prostituição. É evidente, entretanto, que a pornografia não tem um efeito libertador nas vidas de prostitutas, nem estimula sua autonomia sexual, como os liberais argumentam.
     Nós, as mulheres de WHISPER, escapamos da brutalidade da família patriarcal para nos acharmos a mercê de cafetões, proxenetas e clientes, que construíram uma indústria multimilionária vendendo o que nossos pais e maridos nos roubaram originalmente. Nós estamos aqui para expor a mentira de que a prostituição é a resposta à subordinação social, sexual e econômica das mulheres.
     Prostituição não é uma “escolha de carreira”:
Eu olho para a minha vida e quando vim a este mundo, sabe, como criança, eu esperava ser alimentada, vestida, abrigada e tratada com respeito e bondade como qualquer ser humano deve desejar (...) Eu não acho que vim a este mundo com o desejo de ser prostituta. Eu acho que isso foi algo que a dinâmica social me impôs. Algo que me foi ensinado. (WHISPER, 1988)
     Prostituição não é um “crime sem vítimas”
Prostituição é violência contra a mulher (...) é a pior forma de violência contra a mulher porque você é abusada por clientes, você é abusada por cafetões, você é abusada pela polícia. A sociedade em geral vira as costas para você. (WHISPER, 1988)
     Prostituição é um crime cometido contra mulheres por homens em sua forma mais tradicional. Não é nada menos do que a comercialização do abuso sexual e desigualdade que mulheres sofrem na família tradicional e não pode ser nada além disso.

As leis foram feitas por homens e homens desejam manter mulheres na prostituição porque eles desejam controlá-las, então o que eu mudaria a prostituição não seria legalizá-la, mas colocar um fim nela e pará-la, e eu não acredito que os homens queiram fazer isso. Eu acho que as mulheres terão de fazer isso. (WHISPER, 1988)
     Destruir a instituição da prostituição é a tarefa mais formidável que o feminismo contemporâneo enfrenta. 
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9Por exemplo, Joe Comforte, dono do Mustang Ranch, Nevada; Russ Reade e Kenneth Green, donos do Chicken Ranch, Nevada; e Jim Fondren, dono do Sagebrush Ranch, Nevada.
10Por exemplo, Earl Montpetit, dono da boate OZ em St. Paul, Minnesota, condenado por promover prostituição e aguardando julgamento por acusações de estar envolvido em prostituição de menores em 1988; Walter Montpetit, antigo dono do Belmont Club em St. Paul, Minnesota, condenado por promover prostituição em 1988 (Minneapolis Star and Tribune, Abril 1988); David Fan, atual dono do Belmont Club, perdeu a licença para venda de bebidas este ano por empregar uma menina de 13 anos como stripper e por evidências de atividades relacionadas à prostituição (Minneapolis Star and Tribune, Setembro 1988); Patrick Carlone, proprietário do Hollywood Stars Dance Studios em St. Paul, Minnesota, condenado por dois tribunais por promover a prostituição de suas funcionárias em 1988 (Minneapolis Star and Tribune, Janeiro 1988).
11Existem mais de 150 companhias de “noivas por correspondência” operando nos Estados Unidos. The News and Observer. (Raleigh, 21, Novembro 1986: p. 20A).
12Martin Hodas, dono do “Paradise Alley” em Nova Iorque; Clemente D’Alessio e Scot Hyman, condenados por pornografia infantil e antigos gerentes de livrarias adultas subsidiárias do “Show World” em Nova Iorque (Ritter, 1987: pp. 166-69);Feria Alexander, dono de várias livrarias adultas e peep shows em Minneapolis, Minnesota.
13Hustler oferece pagamento aos leitores que enviam as melhores “beaver shots”(fotografias pornogáficas) de suas esposas ou namoradas.
14”Sex-Tex” é um serviço de computador da revista High Society que fornece um mercado não regulamentado onde material pornográfico pode ser distribuído.
15 O projeto Mary Magdalene em Reseda, Califórnia, reporta que 80% das mulheres com as quais trabalharam foram sexualmente abusadas quando crianças; Genesis House em Chicago reporta que 94% foram abusadas quando crianças (no Primeiro Workshop Nacional das que Trabalham Com Prostitutas Mulheres, Wayzata, Minnesota, 16-18 Outubro, 1985).
16Audiências públicas antes do Conselho da Cidade de Minneapolis; Sessão II, Dezembro, 1983, p. 70.
17Nenhuma das mulheres usadas para pornografia recebeu compensação adicional, assinou contrato afirmando consentimento e nenhuma manteve posse ou controle do material. Além disso uma mulher revelou que um cliente a ameaçou com uma faca quando ela se recusou a posar para fotos pornográficas. Ele em seguida a amarrou com cordas, a fotografou, recusou pagar e a deixou amarrada em um motel. Mimi Silbert também reconhece o papel desempenhado pela pornografia para legitimar a vitimização em seu estudo sobre agressão sexual de prostitutas (1982, p. 21).
REFERÊNCIAS (em inglês)
Alexander, Priscilla. (1983, July). Working on prostitution, California: NOW, Inc., Economic Justice Committee.
Alexander, Priscilla. (1987). Prostitution: A difficult issue for feminism. In Delacoste and
Alexander (Eds). Sex work. Cleis Press. Barry, Kathleen, (1981). The underground economic system of pimping. Journal of International Affairs.
Boyer, D. (1984, January). A cultural construction of a negative sex role: The female prostitutes. Carmen, Arlene and Moody, Howard. (1985). Working women: The subterranean world of street prostitution. New York: Harper and Row.
COYOTE/NTFP (National Task Force on Prostitution) Policy Statement. 1984-1986. 
Erbe, Nancy. (1984). Prostitution: Victims of men's exploitation and abuse. Law and Inequality,
2:609.
Genesis. (1986). Unpublished Report.
Crime syndicate's web snares Oriental women. (1985, March 8). Kansas City Times, pp. Al, A2.
Gray, Diana. (1973). Tuming-out: A study of teenage prostitutes. Urban Life and Culture.
Hunter, Susan. (1986, June 30). Report to the Council for Prostitution Alternatives. Portland, Oregon.
"I'm blunt," says judge to outraged feminists. (1986, May 11). Los Angeles Times, Part IX, pp. 1, 7.
St. Paul Star Tribune. (1989, September 7). St. Paul, Minnesota.
Star Tribune. (1988, January 22). Minneapolis, Minnesota, p. IB.
Star Tribune. (1988, April 19). Minneapolis, Minnesota, p. 1A.
Silbert, Mimi. (1982, November). Sexual assault of prostitutes. Phase I, Final Report. San Francisco: National Center for the Prevention and Control of Rape, National Institute for Mental Health.
WHISPER. (1987). WHISPER Oral History Project. Transcript of interview. Portland, Oregon.
WHISPER. (1988). Prostitution: A matter of violence against women. Video. Minneapolis: WHISPER.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

[CAPÍTULO 1, PARTE 1] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

CAPÍTULO 1
   O “CONTROLE DA CULTURA SOBRE O CORPO” - Práticas de beleza como agência feminina ou subordinação feminina.
     Nos anos 90 uma divergência fundamental emergiu entre escolas feministas a respeito da extensão das práticas de beleza ocidentais: se representavam o status subordinado das mulheres ou se poderiam ser vistas como a expressão da escolha ou agência femininas. Ideias emergiram em períodos particulares por causa de uma concentração de forças sociais que as fizeram possíveis. Nos anos 60 e 70 os novos movimentos sociais do feminismo, Black Power, políticas lésbicas e gays surgiram em resposta ao clima de esperança na possibilidade de transformações sociais. Esses movimentos sociais estavam abastecidos pela crença no construcionismo social e pela ideia de que uma transformação social radical era possível na busca pela igualdade social. Essas ideias sustentaram as profundas críticas feministas radicais à beleza que emergiram naquele período.
     Nos anos 80, entretanto, as ideias do feminismo radical, como as outras ideologias socialmente transformadoras foram tratadas com desprezo por ideólogos de direita que as chamaram de “politicamente corretas”. Uma nova ideologia de fundamentalismo de mercado foi desenvolvida para prover suporte ideológico para a expansão do recém desregulamentado capitalismo desenfreado. Segundo essa ideologia, o livre mercado, controlado apenas pelas escolhas de cidadãos poderosos, criaria uma estrutura social e econômica ideal sem a interferência do Estado. Cidadania, nessa visão, não era sobre direitos mas sobre responsabilidades, e o cidadão tinha o poder da escolha consumista (Evans, 1993).
     Nos anos 90 essas ideias sobre o poder de escolha influenciaram muitas feministas também. A ideia de que as mulheres eram coagidas pelo complexo moda/beleza para aderirem a práticas de beleza (Bartky, 1990), por exemplo, foi desafiada pela nova geração de feministas liberais que falavam sobre mulheres serem empoderadas pelo movimento feminista para escolher práticas de beleza que poderiam não ser mais vistas como opressivas. A nova linguagem que penetrou o pensamento feminista a partir de discursos sutis de direita foi a da “agência”, “escolha” e “empoderamento”. Mulheres passaram a ser consumidoras bem informadas que poderiam exercer seu poder de escolha no mercado. Elas poderiam escolher práticas e produtos. Feministas que continuaram a argumentar que as escolhas das mulheres foram severamente forçadas e feitas em um contexto de relativa ausência de poder feminino e dominância masculina foram criticadas com certa aspereza como “feministas vitimistas”; ou seja, que faziam de mulheres vítimas ao negar sua agência (Wolf, 1993).
     Nesse capítulo eu examino as ideias da crítica feminista radical à beleza e mostro como estas passaram a ser desafiadas tanto pelo novo feminismo liberal quanto por seu equivalente na academia, uma variedade de feminismo pós-moderno que enfatiza a escolha e a agência de maneira similar. Eu considero as tensões desenvolvidas entre os defensores da “escolha” e aqueles que enfatizavam o papel da cultura e da força na exigência da conformidade das mulheres com as práticas de beleza da feminilidade. Eu concluo com as ideias de algumas teóricas feministas e pesquisadoras que forneceram explicações convincentes sobre a coação que restringe as possibilidades de agência das mulheres nas práticas de beleza em culturas de dominância masculina fundadas na desigualdade/submissão sexual

     A CRÍTICA FEMINISTA À BELEZA
     As críticas apontaram que a beleza é uma prática cultural do tipo que é prejudicial a mulheres. Para escritoras como Andrea Dworkin a questão mais importante não era a dimensão na qual mulheres poderiam expressar agência e “escolha” no uso de maquiagem, mas quais os danos causados pelas práticas de beleza nas mulheres. Seu livro Woman Hating (Ódio a mulheres) é um bom exemplo da poderosa crítica que feministas radicais estavam fazendo à noção de beleza nos anos 70 (Dworkin, 1974). Ela analisa a ideia de “beleza” como um aspecto da forma pela qual mulheres são odiadas em culturas de supremacia masculina. Dworkin acusa a cultura do ódio a mulheres “pelas mortes, violações e violência” contra mulheres e diz que feministas “procuram por alternativas, formas de destruir a cultura como a conhecemos, reconstruindo-a como a imaginamos” (1974, p. 26).
Dworkin enxerga que as práticas de beleza geram extensos efeitos nocivos nos corpos das mulheres e em suas vidas. Práticas de beleza não apenas são perda de tempo, caras e dolorosas para a autoestima, mas:
     Padrões de beleza descrevem em termos precisos o relacionamento que uma pessoa tem com seu próprio corpo. Eles determinam sua mobilidade, espontaneidade, postura, jeito de andar, como ela deve colocar o corpo. Eles definem precisamente as dimensões de sua liberdade física.
                                                                                                               (Dworkin, 1974, p. 112)
     E, continuando, padrões de beleza também surtem efeitos psicológicos nas mulheres porque “a relação entre liberdade física e desenvolvimento psicológico, possibilidades intelectuais e potencial criativo é muito estreita”. Dworkin, como outras feministas radicais críticas da beleza, descreve o amplo alcance das práticas as quais mulheres devem seguir para estar de acordo com o que dita a beleza:
     Em nossa cultura, nenhuma parte do corpo feminino permanece intocada, inalterada. Nenhuma característica ou extremidade é poupada de arte, dor ou aperfeiçoamento. No cabelo se tinge, passa laquê, alisa ou faz permanente; sobrancelhas têm os pelos arrancados, são maquiadas com lápis, tingidas; olhos são delineados, se usa máscara, sombra; cílios são curvados ou falsos  - da cabeça aos pés, cada aspecto da face feminina, cada seção de seu corpo é sujeito a modificação, alteração.
                                                                                                                                                           (Dworkin, 1974, p. 112)
     Curiosamente esta lista omite a cirurgia cosmética, o que não faria sentido atualmente. Isso mostra o progresso que foi feito na transformação da cirurgia cosmética em simplesmente uma outra forma de maquiagem em 30 anos desde que Dworkin embarcou em sua análise (Haiken, 1997). Os outros elementos opressivos de beleza que Dworkin aponta são os “vitais para a economia” e “a essência da diferenciação nos papéis masculino e feminino, a mais imediata realidade física e psicológica de ser mulher” (Dworkin, 1974, p. 112). Práticas de beleza são necessárias para que os sexos sejam diferenciados, para que a classe sexual dominante possa ser diferenciada da subordinada. Práticas de beleza criam, da mesma forma que representam, a “diferença” entre os sexos.
     Sandra Bartky, que também desenvolveu suas ideias nos impetuosos dias dos anos 70 quando críticas profundas à condição da mulher incluíam uma análise da beleza, introduziu a questão do motivo pelo qual mulheres aparentemente poderiam “escolher”. Ela explica por que nenhum exercício óbvio da força é necessário para fazer as mulheres adotarem práticas de beleza. “É possível”, diz ela, “ser oprimida em maneiras que não precisam envolver privação física, desigualdade legal ou exploração econômica; pode-se ser oprimida psicologicamente” (Bartky, numa coleção de fragmentos previamente publicados, 1990, p. 23). Para apoiar o afirmado ela utiliza o trabalho do teórico anticolonial Frantz Fanon que escreveu sobre a “alienação psíquica” dos colonizados. A opressão psicológica nas mulheres, Bartky diz, consiste em mulheres sendo “estereotipadas, culturalmente dominadas e sexualmente objetificadas” (1990, p. 23). Ela explica essa dominação cultural como uma situação na qual “todos os itens na vida geral de nosso povo – nossa língua, nossas instituições, nossa arte e literatura, nossa cultura popular – são sexistas; isso tudo, em maior ou menor grau, manifesta a supremacia masculina” (1990, p. 25). A ausência de qualquer cultura alternativa na qual mulheres podem identificar uma forma diferente de ser mulher reforça práticas opressoras, “A subordinação das mulheres, dessa forma, por ser uma característica tão sutil em minha cultura, vai (se não for contestada) parecer natural – e por ser natural, inalterável” (1990, p. 25).
     O alicerce dessa dominação cultural é o tratamento das mulheres como objetos sexuais e a identificação das próprias mulheres com essa condição cultural.  Bartky (1990) define a prática de objetificação sexual assim: “uma pessoa é sexualmente objetificada quando seus órgãos sexuais ou funções sexuais são separadas do resto de sua personalidade e reduzidas ao status de meros instrumentos ou representados como se fossem capazes de representá-la.” (p. 26). As mulheres incorporam os valores da objetificação sexual masculina nelas mesmas. Catharine MacKinnon chama isso de ser “coisificada” na cabeça (MacKinnon, 1989). Elas aprendem a tratar seus próprios corpos como objetos separados delas mesmas. Bartky explica como isso funciona: um homem assovia, objetificando sexualmente a mulher, o que resulta em “O corpo em que eu habitava há apenas um momento com tanta facilidade agora inunda minha consciência. Eu fui transformada em objeto” (Bartky, 1990, p. 27). Ela explica que não é o suficiente para um homem simplesmente olhar secretamente para uma mulher, ele tem que fazer com que ela saiba que ele está olhando com o assovio. Ela deve “ter consciência de que eu sou uma ‘bela bunda’: Eu devo me ver como eles me veem” (p.27). O efeito desse comportamento controlador masculino é “Sujeitas ao olhar clínico do apreciador masculino, mulheres aprendem a avaliar a si mesmas antes e melhor” (Bartky, 1990, p. 28). Assim, mulheres se alienam de seus próprios corpos.
     O “complexo moda-beleza”, representando os interesses corporativos envolvidos nas indústrias da moda e da beleza, segundo Bartky, assumiu o controle que era da família e da igreja de “produção central e regulação da ‘feminilidade’” (1990, p. 39). O complexo moda-beleza promove a si mesmo para as mulheres ao se dizer “glorificando o corpo feminino e promovendo oportunidades para a satisfação narcisista” mas na verdade tem como objetivo “depreciar o corpo da mulher e golpear seu narcisismo” para que ela compre mais produtos. O resultado é que a mulher se sente constantemente deficiente e que seu corpo requer “alteração ou medidas heroicas para conservação” (p. 39).
     Dworkin e Bartky produziram suas críticas à beleza nos anos 70 e início dos anos 80. O mais poderoso trabalho feminista sobre beleza a ser publicado desde então, The Beauty Myth (O Mito da Beleza), de Naomi Wolf, fornece um exemplo interessante de como os tempos mudaram. Apesar de, ou talvez por causa do poder de sua crítica, Wolf sentiu que era necessário publicar, dentro de 3 anos, outro livro, Fire with Fire (Fogo com Fogo) (1993), que tirou a acidez de sua análise e a distinguiu das outras feministas radicais. Wolf argumenta que é exigido que as mulheres adotem práticas de beleza e que essa exigência tornou-se mais severa nos anos 80 como uma forma de retaliação contra a ameaça do movimento de libertação feminina e as oportunidades melhores, particularmente no trabalho, as quais as mulheres passaram a ter acesso. Como ela explica, “Quanto mais obstáculos legais e materiais são superados pelas mulheres, mais rigorosas, pesadas e cruéis imagens de beleza feminina surgem para nos afligir” (1990, p. 10). A análise de Wolf sugere que as mulheres são coagidas a adotar práticas de beleza pelas expectativas depositadas nas mulheres no ambiente de trabalho. As mulheres devem ter entrado no ambiente de trabalho em grande número nos anos 70, mas para não ameaçar os homens e para cumprir a exigência serem objetos para o deleite sexual de seus colegas homens, elas precisavam se envolver em dolorosos, caros e demorados procedimentos que não eram esperados de seus semelhantes homens se eles quisessem conseguir e manter empregos. Havia uma “qualificação estética profissional” que acompanhava a mulher no local de trabalho. Curiosamente, apesar da força da crítica de Wolf às práticas de beleza ela não as considerou como nocivas em si mesmas, mas apenas quando eram impostas ao invés de “escolhidas” pelas mulheres. Em seu último capítulo, “Beyond the Beauty Myth” (“Além do Mito da Beleza”) ela pergunta “Isso tudo significa que não podemos usar batom sem nos sentir culpadas?” (1990, p. 270);  e responde “Pelo contrário”. Ela explica:
     Em um mundo no qual mulheres têm escolhas reais, as escolhas que fazemos sobre nossa aparência serão encaradas ao menos como realmente são: nenhuma grande coisa.
     Mulheres devem poder se enfeitar com objetos bonitos sem pensar quando não existir dúvida que nós não somos objetos. Mulheres serão livres do mito da beleza quando nós pudermos escolher usar nossas faces e roupas e corpos como uma simples forma de expressão entre tantas outras.
(Wolf, 1990, p. 274)
     A análise de Wolf não sugere que exista um problema com o fato de mulheres, e não homens, terem que se envolver em práticas de beleza de forma alguma, mas que elas apenas não são livres para escolher fazer isso ou não. É essa falha em fazer as perguntas fundamentais sobre o motivo pelo qual as práticas de beleza são conectadas com as mulheres e por que qualquer mulher iria querer continuar com elas após a revolução, que faz de The Beauty Myth um livro feminista liberal ao invés de radical. Fire with Fire tornou claras suas referências liberais (Wolf, 1993). Nesse livro ela afirma que as mulheres não somente podem escolher usar maquiagem, mas também podem escolher ser poderosas. As forças materiais envolvidas na estruturação da subordinação feminina desapareceram para fazer da libertação um projeto de força de vontade individual, “Se nós não conseguirmos (...) atingir a igualdade no século XXI, será porque as mulheres escolheram em algum nível não exercer o poder que é nosso direito inato” (1993, p. 51).
     A descrição de Wolf de sua clara aflição devido às reações negativas do público ao radicalismo em seu livro sobre beleza pode ser uma pista do motivo pelo qual ela mudou tão rapidamente para uma completa feminista liberal. Depois da publicação, ela disse, “Meu trabalho envolvia me relacionar, em programas de TV e rádio, com pessoas que representavam as indústrias as quais eu estava criticando. Muitas estavam, compreensivelmente, com raiva e na defensiva. Apresentadores eram muitas vezes ríspidos... Eu estava muito desconfortável” (1993, p. 238). Sua experiência foi um choque porque “Eu sempre pensei em mim mesma como acolhedora, amigável e feminina”, e “após um vigoroso debate, eu ia para casa chorar nos braços do meu parceiro”. A experiência de Wolf mostra como é difícil criticar algo tão fundamental à dominância masculina na cultura ocidental como práticas de beleza. Sua reação a isso ajuda a explicar por que ela escolheu escrever Fire with Fire logo depois disso, um livro que parece contradizer a forte mensagem de The Beauty Myth. Ela estabelece uma inofensiva forma de feminismo e critica feministas radicais. Feministas radicais que fizeram campanha contra a violência masculina tornaram-se “vitimistas” que “se identificam com a impotência”, “julgam” particularmente “a sexualidade e aparência de outras mulheres” e são “antissexuais” (1993, p. 137). Ela procura acalmar o coração masculino que deve ter ficado transtornado com The Beauty Myth proclamando, “A atenção sexual masculina é o sol sob o qual floresço. O corpo masculino é meu chão e meu abrigo, meu eterno destino” (p. 186). Wolf compensou o que ela deve ter visto como uma loucura juvenil de escrever um livro sobre beleza que ameaçasse os interesses da dominância masculina. Ela recuou para uma firme distinção público/privado que isenta a área “privada” do escrutínio político, transformando-a em uma arena para o exercício de escolha das mulheres. 

quarta-feira, 8 de junho de 2016

9 coisas que realmente te tornam uma feminista melhor que os outros

Título original: 9 things that really do make you a better feminist than everybody else
Autora: Megan Murphy
Postado em: 11/09/2015
Disponível em: http://goo.gl/cosr8q
Tradução: Laryssa Azevedo

     Você pode perguntar: Por que ler a Bustle? Bem, naturalmente pelas listas hilárias como uma publicada ontem, intitulada “9 coisas que não te fazem uma feminista melhor que todos os outros.” Eu vou te poupar alguns minutos que seriam melhor gastos encarando seus poros ou postando fotos do seu gato no Instagram e resumir pra você: Tudo o que você faz é feminista e todo mundo é feminista e além disso feminismo é o que você disser que é #abençoada.
     Sente-se melhor? Oh, ótimo, perfeito! Estou aguardando a próxima lista deles, “11 coisas que não fazem de Marx um comunista melhor do que você.” Você domina os meios de produção? E daí? Não deixe ninguém cagar regra no seu comunismo #comunismoparatodos. Nasceu burguês mas sempre se identificou com a classe trabalhadora? Sem problemas. Assumir uma identidade proletária é uma ótima forma de subverter o binarismo de classe.
     Acabei divagando. A parte boa da lista da Bustle é que me inspirou a criar uma lista própria. Aqui estão nove coisas que realmente irão te fazer uma feminista melhor que os outros.
1)   Ser mulher
     Você pode ser um poderoso aliado do feminismo mesmo sendo homem, mas você nunca vai entender totalmente a experiência feminina. As mulheres devem liderar o movimento em prol da própria libertação porque as mulheres são o grupo humano oprimido pelo patriarcado, como classe, enquanto homens são o grupo dominante de humanos em tal sistema. Ser mulher é fundamental para ser feminista porque o feminismo é um movimento de mulheres para mulheres. Enquanto homens também são impactados negativamente pelo patriarcado (masculinidade também é uma droga), no final das contas os homens é que sempre se beneficiaram dele e mulheres é que sofreram por causa dele (nas mãos de homens). A melhor forma de apoiar o movimento feminista, sendo homem, é desafiar outros homens, privilégios masculinos e violência masculina. De fato, essa é uma grande ajuda e nos poupa o tempo de explicar constantemente para cada homem que conhecemos o motivos de não sermos brinquedos sexuais. Você pode fazer tudo isso sem chamar a si mesmo de feminista. Menos papo e mais ação, meninos.
     2) Entender que feminismo não é sentimento ou identidade, e sim um movimento político
     Feminismo não é sobre vestir uma camiseta que diz que você é feminista. Não é sobre dizer que você é feminista só por dizer, mesmo que não tenha interesse na libertação das mulheres da opressão patriarcal. Tudo bem ser nova no feminismo e estar aprendendo – você não precisa saber tudo sobre o movimento para entrar nele, mas você tem que entender que não é uma palavra maleável, uma logo, ou um produto comercializável. Ninguém jamais diria “Socialismo é o que você disser que é! Seja você mesmo, cara!” Porque isso é estúpido e incorreto.
     Se você pensa que objetificar mulheres ou assédio nas ruas ou privilégios masculinos ou estereótipos de gênero ou violência sexual contra as mulheres é bom e ok, você não é feminista. Tirar uma selfie ou casar ou usar salto ou fazer dinheiro não é igual a feminismo (embora feministas possam fazer essas coisas! Vê como funciona?) porque feminismo não é sobre você individualmente se sentir pessoalmente “bem” ou empoderada no momento. Você pode se sentir empoderada, mas isso não necessariamente produz feminismo. Similarmente, sentir-se “bem” não é igual a empoderamento. Empoderamento, no contexto do feminismo, significa empoderamento social de um grupo de pessoas marginalizadas (nesse caso, mulheres).  É por isso que,  por exemplo, posar nua e se sentir sexy numa revista de moda ou pornografia pode fazer com que determinadas pessoas se sintam bem fazendo isso (elas vão receber reforço positivo, se sentir atraentes, ganhar dinheiro, etc.) mas isso não constitui “empoderamento” pois não gera ascensão de mulheres enquanto classe.
3)      Parar com essa besteira de anti-intelectualismo
     Meu deus, gente! Pensar não é ruim. Claro que você não precisa de um diploma para ser feminista, dã. Mas, pela mesma falácia, toda essa coisa de “Foda-se essa ideologia academicista, foda-se, teoria, foda-se!” é contraproducente e ignorante.
     Não existe ativismo sem ideologia. Ideologia é o corpo de ideias que enquadram um movimento político. Nós precisamos dela, senão como é que nós saberíamos o que estamos fazendo? (O que é aquilo? Nós estamos só tirando selfies e gritando interseccionalidade uns para os outros no Twitter? Ah bom. Foda-se ideologia. Foda-se.)
     Da mesma forma, entender a história desse movimento é uma coisa boa. Isso garante que nós não reinventemos a roda de novo e de novo. Isso garante que nós não reescrevamos a história, efetivamente apagando o trabalho e ativismo de milhares e milhares de mulheres que lutaram pelos direitos que temos hoje.
     Entender como pensar criticamente, entender ideologia feminista, entender história feminista – essas coisas não são pra elites esnobes, essas coisas são fundamentais. De outra forma nós não conseguimos nada, e somos deixadas cegamente gritando Poder das vadias! no abismo virtual. Educação e academia não são coisas ruins, são coisas boas que se tem sido inacessíveis para muitas pessoas no mundo e/ou deixaram muitos de nós endividados. Mas educação não é o problema, o sistema é. (Ensino superior gratuito é uma pauta feminista. Poste com a hashtag.)
     4) Entender que feminismo não é sobre ser politicamente correto
     Por favor não me entenda mal aqui – ser feminista significa que deve-se pensar bem em suas palavras e atos. Dizer e fazer qualquer merda que quiser é egoísta, irresponsável e imaturo. Mas nossos esforços para evitar ser adolescentes egocêntricas e ofensivas não tem a ver com o politicamente correto.
     Ser feminista significa pensar criticamente sobre o mundo ao seu redor. Você não aceita as coisas de cara e questiona o status quo. Você diz a verdade, mesmo que a verdade gere desconforto nas pessoas. Mudar gera desconforto nas pessoas. Questionar a ideologia dominante gera desconforto nas pessoas. Ser politicamente correto significa ter certeza de não estar chateando ninguém e que você aceita a autoridade sem questionar. Essa autoridade pode ser “progressiva” ou “liberal”. Pode até ser uma autoridade que alguns consideram “feminista”, mas ainda é uma autoridade. No momento em que você para de pensar por si mesma, começa a repetir o discurso dos seus pares sem pensar independente do mantra fazer sentido ou não, para de ser corajosa, para de questionar a ideologia e as mensagens por trás do discurso popular, esse é o momento em que você deixa de ser agente da mudança e se torna um fantoche.
     Tantas feministas hoje têm medo de falar qualquer coisa controversa e isso é deprimente pra caralho. Feministas jovens têm medo de falar sobre ou questionar discursos populares para que não sejam consideradas intoletantes ou alguma coisa “fóbicas”. Ao invés de retrucar, elas se deixam levar. Divergir é algo bom. Sua habilidade de pensar por si mesma e questionar ideias que são tidas como corretas é crítica. Que se foda o politicamente correto.
     5) Não discriminar por idade
     Quando é que discriminação por idade tornou-se aceitável no feminismo? Ah, sim. Terceira onda... Ok, então nós entendemos que adolescentes revoltadas querem dar uma de “Você não é minha mãe de verdade!” *bate a porta* nas mais velhas, mas nós não somos adolescentes revoltadas. Somos adultas. E se você é uma feminista é inaceitável dizer “segunda onda” como um insulto. Esse lixo promove o ódio a mulheres, é antifeminista e discriminatório e se você quiser lançar essa, parabéns, você está apoiando o patriarcado. Mantenha sua ignorância e continue perpetuando noções sexistas de que mulheres que não são mais jovens são bobas, antiquadas, puritanas, sem criatividade, sem humor, sem vontade de viver, segurando suas pérolas a caminho da casa dos velhos amigos, onde podem jogar bingo, mas saiba que você não é feminista. Mulheres mais velhas do movimento sabem mais que você e não vamos a lugar nenhum sem elas.
     6) Não acusar feministas de odiar sexo e homens como se isso fosse uma coisa ruim
     Mulheres podem odiar homens e sexo. Odiar homens e sexo é perfeitamente natural. Homens e sexo têm sido fonte de trauma para incontáveis mulheres, ao longo de séculos. Também é perfeitamente natural amar determinados homens e gostar de sexo. Nenhuma dessas realidades são coisas que devem ser usadas por feministas para insultar, atacar ou repudiar outras feministas. Acusando feministas que desafiam a violência masculina de “odiar sexo” ou “odiar homens” você está reforçando lixo heteronormativo e alimentando estereótipos que dizem que feministas só estão bravas porque não estão sendo fodidas o suficiente. Essas historinhas estão conectadas à cultura do estupro – a ideia de que homens podem foder as mulheres até que elas fiquem passivas ou até que se tornem hétero. Essa é a ideia de que apenas as mulheres fodíveis são mulheres “de verdade”. É a ideia de que mulheres precisam de homens para serem completas e para que importem – que elas apenas existem em relações com homens. Essas são ideias antifeministas.
     A mulher gostar de homem ou sexo não influi em seu valor ou se sua vida, ideias, palavras ou ativismo significam algo ou não. O feminismo luta justamente contra a ideia de que o relacionamento das mulheres com homens é o que faz com que elas sejam visíveis e valorizáveis enquanto seres humanos. É que nem atacar uma mulher dizendo que ela é feia. Mulheres não existem para ser olhadas ou fodidas por homens. Elas podem existir por elas mesmas! Leve seu sexismo lesbofóbico de volta ao fórum da MRA (Movimento pelos direitos dos homens). Eles vão te amar lá.
     7) Não ser do MRA
     Falando em MRA, sabe o que definitivamente te torna uma feminista melhor que todos os outros? Lutar pelos direitos das mulheres, não pelos direitos dos homens. E com isso eu quero dizer, ao invés de lutar pelos direitos de homens que querem pagar por boquetes, tente lutar pelos direitos humanos das mulheres, que incluem poder pagar o aluguel e se alimentar sem ter que pagar boquete para os homens. Um essencial, porém negligenciado aspecto do feminismo é a ideia de que as mulheres são humanas. Isso aí! Somos tão radicais assim. E por sermos humanas merecemos coisas como comida e casa e deveríamos ter acesso a essas coisas sem ter que transar com homens estranhos ou ter que nos sujeitar a abuso.
     Se você pensa que o homem tem direito ao sexo, você está errado. Ninguém tem direito a sexo. Não é um direito humano. Seu fetiche por mulheres asiáticas, pornô com colegiais, anal ou por chamar mulheres de vadias enquanto puxa o cabelo delas e as sufoca não é uma parte inata da sua sexualidade bizarra. Isso só significa que você se excita com a desumanização de mulheres. Bye, Felicia.
     8) Entender que objetificação e nudez não são a mesma coisa
     Feministas não odeiam os corpos nus de mulheres. Nós amamos os corpos femininos. Nós os temos. Nós os usamos todos os dias para coisas como comer e andar e agarrar filhotinhos. Nós adoraríamos se nossos corpos pertencessem a nós, para nosso próprio uso e aproveitamento, ao invés de para a população masculina.
     Nossos corpos não existem para ser admirados ou sexualizados ou fodidos. Eles existem para que vivamos neles. Nossa cultura fundiu sexo e sexualidade de tal forma que pensamos que são a mesma coisa. Mas não são. Objetificação pode parecer sexy porque nós aprendemos a sexualizar objetificação. Nós aprendemos a performar sexualidade ao invés de sentir. A razão pela qual nudez feminina é tão forte não é porque feministas têm medo da própria pele, mas porque a nudez feminina não pode existir sem ser pornificada. É por isso que as pessoas surtam quando as mulheres amamentam em público. Porque nós pensamos que a única razão de um seio estar ali é para que os homens o comam com os olhos. Parem de transformar nossos corpos em material para punheta e talvez o “puritanismo” da sociedade desapareça.
     9) Pelo amor de deus, parem de tentar fazer com que o feminismo seja legal
     Popularizar o feminismo não funciona. Não porque eu não acho que o feminismo devesse ser popular, mas porque para vendê-lo para as massas atualmente, é preciso “amansá-lo” até o ponto em que ele perde todo o significado. Nós não precisamos vender. Nós não deveríamos vender. Nós podemos manter nossos valores e ainda trazer as mulheres para o barco. Se as pessoas não quiserem entrar no feminismo de verdade porque elas não gostam do feminismo de verdade, talvez elas precisem de mais tempo pra pensar. Ou talvez elas apenas não sejam feministas. Eu sou a favor educar pessoas, mas vamos educá-las direito. Tornar o feminismo sexy e palatável para pessoas que não acham que o patriarcado é um problema não vai ajudar o feminismo.

     Ser feminista não significa que você não pode ser legal e divertida ou até mesmo atraente, mas feminismo de verdade não é sobre ser legal, divertida e atraente. Na verdade não é legal, nem divertido, nem atraente. Desculpa aí. Quer dizer, nós estamos lutando contra coisas tipo abuso doméstico, estupro, escravidão sexual, incesto, pedofilia e feminicídio. Não é legal, nem divertido nem sexy. Esse não é o ponto. Feminismo não é a porra de uma tendência. 

terça-feira, 7 de junho de 2016

Confrontando as Mentiras Liberais Sobre Prostituição - Evelina Giobbe (1990) PARTE I

Este texto faz parte do livro The Sexual Liberals and the Attack on Feminism, editado por Dorchen Leidholdt e Janice G. Raymond, publicado em 1990. 
Título Original: Confronting Liberal Lies About Prostitution
Autora: Evelina Giobbe
Tradução: Laryssa Azevedo

     WHISPER¹ é uma organização nacional de mulheres sobreviventes da indústria do sexo. Nosso propósito é expor as condições que tornam mulheres e crianças vulneráveis à exploração sexual e os prendem em sistemas de prostituição, expor e invalidar mitos culturais sobre mulheres usados na prostituição e na pornografia, e acabar com o comércio de mulheres e crianças. Nós definimos sistemas de prostituição como qualquer indústria na qual corpos de mulheres e crianças são comprados, vendidos ou negociados para uso e abuso sexual. Esses sistemas incluem pornografia, shows de sexo ao vivo, peep shows (exibição de filmes pornográficos em cabines, geralmente localizadas em livrarias de conteúdo adulto), escravidão sexual internacional e prostituição como é comumente definida.² Todas essas indústrias são simplesmente diferentes veículos comerciais através dos quais homens comercializam mulheres e crianças.

     Nós escolhemos o acrônimo WHISPER (sussurro), porque mulheres em sistemas de prostituição sussurram entre si sobre coerção, degradação, abuso sexual e assédio sobre os quais a indústria do sexo é fundada, enquanto mitos sobre prostituição são clamados na pornografia e na mídia de massa, e por autodenominados “especialistas”. Essa mitologia, que esconde a natureza abusiva da prostituição, é ilustrada pela ideologia de liberais sexuais que erroneamente alegam que prostituição é uma escolha de carreira; que prostituição sintetiza a liberação sexual das mulheres; que prostitutas estabelecem as condições sexuais e econômicas de suas interações com seus clientes; que a relação cafetão/prostituta é um acordo social ou de negócios mutuamente benéfico no qual mulheres entram livremente; que ser prostituta ou cafetão é ocupação aceitável e tradicional em comunidades negras. 
     O liberalismo sexual desenvolveu três argumentos principais que tentam explicar o papel central dos cafetões no recrutamento de mulheres e garotas na chamada prostituição voluntária: “cafetões como gerentes de negócios”; “cafetões como minoria estigmatizada”; e “cafetões como amantes ou namorados”. Todos os três modelos foram adotados e promovidos por Priscilla Alexander³, no NTFP (The National Task Force on Prostitution, A Força Tarefa da Prostituição) e no COYOTE (Cast Off Your Old Tired Ethics, Abandone Sua Ética Ultrapassada), e Arlene Carmen e Howard Moody, falando no púlpito da Judson Memorial Church e em seu livro Working Women: The Subterranean World of Street Prostitution (1985) (Mulheres Trabalhando: O Mundo Subterrâneo da Prostituição de Rua). Como suas visões coletivas representam a promoção de e apologia à exploração comercial de mulheres através da pornografia e prostituição feita pelo liberalismo sexual, este artigo abordará o trabalho deles.
     Para entender como cafetões e aliciadores foram redefinidos como “gerentes de negócios”, é preciso examinar o mito de que a prostituição é um trabalho como outro qualquer. De acordo com o liberalismo sexual, “Prostituição é uma ocupação feminina tradicional, uma ocorrência diária na qual o desejo biológico encontra a necessidade econômica.” E continua – de forma ambígua – informando que é “um ato primariamente pessoal e íntimo” e ao mesmo tempo “um dos últimos pilares da livre iniciativa e do capitalismo liberal” (Arlene Camen e Howard Moody, 1985). O fato de a prostituição requerer a mercantilização dos corpos femininos para venda no mercado retira o ato da esfera pessoal. Além disso, sobreviventes descrevem a prostituição como “nojenta,” “abusiva,” e “como estupro,” e explicam que aprenderam a lidar com ela desassociando-se de seus corpos ou usando drogas e álcool para entorpecer a dor física e emocional (WHISPER, 1988). Dessa forma, seria mais correto descrever a prostituição como incômoda, indesejada e muitas vezes claramente sexo violento que mulheres suportam ao invés de um “ato pessoal e íntimo.”
     A falha central da análise do liberalismo sexual é que esta ignora as sobreviventes da prostituição que testemunharam repetidamente que não experimentaram prostituição como uma carreira (WHISPER, 1988). Ademais, a análise desconsidera a função social da prostituição: estender a todos os homens o direito de acesso incondicional a mulheres e meninas adicionado aos privilégios aproveitados por maridos e pais dentro da instituição do casamento. Essas dinâmicas são claramente entendidas por mulheres usadas nos sistemas de prostituição, como ilustrado na observações de uma sobrevivente que conectou o abuso físico e emocional ao qual foi submetida em sua família e seus casamentos ao subsequente recrutamento na prostituição por um cafetão: “Eu basicamente apenas pensei que mulheres eram colocadas na Terra para o prazer sexual dos homens em troca de casa e comida” (WHISPER, 1988).
     Alguns liberais justificam prostituição como uma criação altruísta das mulheres negras. “Prostituição não é uma coisa estranha às mulheres negras,” escrevem Carmen e Moody. “Em todas as cidades sulistas nos anos 1920 e 30 o distrito da luz vermelha era localizado na área do gueto onde jovens garotos brancos ‘descobriam sua masculinidade’ com a ajuda de prostitutas de dois dólares (...) Prostitutas(...) estavam integrando negros e brancos muito antes dos movimentos pelos diretos civis” (1985: pp. 184-185). Espantosamente, Carmen e Moody consideram a compra e venda de mulheres negras por homens brancos e seus filhos como a vanguarda do fim da segregação.
     A supremacia masculina branca intensifica condições opressivas que fazem com que mulheres negras em particular fiquem vulneráveis ao recrutamento ou coerção para a prostituição. Ao limitar oportunidades educacionais e de carreira e fomentando dependência em um inadequado e punitivo sistema de bem-estar, o racismo cria vulnerabilidade econômica. Isso é ilustrado pelo testemunho de uma mulher negra que sobreviveu a prostituição:
Dos negros que chegavam em Indiana, na usina siderúrgica de lá, eles contrataram homens. Todos os homens conseguiram empregos na usina; pouquíssimas mulheres. Você realmente tinha que ser muito bonita ou conhecer alguém, de modo que não existiam trabalhos no campo, não existiam trabalhos nos escritórios para você, a não ser que você conhecesse alguém ou algo; mas existiam muitos empregos para você nos clubes de striptease, como dançarina ou até mesmo em alguns restaurantes e bares do lado de fora das usinas para onde os homens iam. (WHISPER, 1988) 
     Estereótipos racistas acerca de mulheres negras na pornografia e políticas racistas que localizam livrarias pornográficas, peep shows, bares de topless e prostituição em zonas pobres de vizinhança negra e étnica, criaram um ambiente em que mulheres negras são particularmente vulneráveis. 
Jovens mulheres têm alguém como modelo. Em minha família e em minha vizinhança e ao meu redor existia um tipo de estilo de vida, um estilo de vida no qual você acaba morrendo ou na cadeia, e foi daí que eu aprendi(...) cafetões me ensinaram, a sociedade me ensinou, minha vizinhança me ensinou, homens em geral, me ensinaram que o caminho para superar isso é usar minha aparência e meu corpo. (WHISPER, 1988)
     Ao não fornecer programas de intervenção efetivos para mulheres negras que são aprisionadas em relacionamentos abusivos – incluindo prostituição – em suas próprias comunidades, políticas racistas enviam a mensagem de que essas mulheres não merecem ajuda:
Eu sinto que as agências de serviço social ignoram as necessidades das mulheres negras (...) Em minha comunidade, crescendo como uma garota negra e até mesmo hoje, não existia nenhuma agência lidando com assédio, prostituição ou estupro (...) Para mim, ser abusada sexualmente por homens e não poder falar sobre isso, não ter ninguém para conversar sobre isso, sendo varrida para baixo do tapete como se isso fosse um estilo de vida (...) fez com que eu voltasse lá e fosse abusada de novo porque ninguém estava me dizendo que isso não era certo, então eu senti que devia me conformar com isso. (WHISPER, 1988)
     A aplicação de políticas racistas desproporcionalmente tem como alvo mulheres negras para assédio, captura, prisão e aplicação de multas (Bernard Cohen, citado em Nancy Erbe, 1984.) Tais ações criam uma porta giratória através da qual mulheres são tiradas das ruas para os tribunais e cadeias e voltam para as ruas para ganhar dinheiro para pagar as penalidades. A aplicação seletiva de leis que proíbem prostituição cria um tipo de regulação ilegítima na qual um imposto é cobrado primariamente contra mulheres negras por homens brancos que projetam, mantêm, controlam e se beneficiam do sistema de abuso no qual estas mulheres são aprisionadas.
     Por último, racismo institucional coloca mulheres negras em um duplo constrangimento ao forçá-las a ir a agências dominadas por brancos para procurar alívio e compensação para seus danos. Se elas falarem abertamente sobre os abusos mantidos em suas comunidades, elas arriscam ser isoladas, ter suas alegações usadas para fomentar estereótipos racistas, e nunca receber apoio efetivo. Se elas permanecerem em silêncio, restam poucos recursos que podem ser usados para obter uma solução efetiva. Dessa forma, o racismo mantém mulheres negras como reféns da lealdade familiar e dos laços da comunidade. Esse dilema é bem articulado por outra mulher negra que sobreviveu a prostituição:
Eu fui ensinada que o que acontece aqui fica aqui. Isso se aplica não apenas à casa, você não fala sobre os negócios de outras pessoas na comunidade, no bairro, então isso se torna uma coisa fechada que se estende da minha casa à casa do vizinho, à igreja (...) Por não poder ir a agências brancas e pedir ajuda eu fui mantida na comunidade, sofrendo violência sexual – que é prostituição e assédio – porque eu não tinha informação, não me era permitido ter informação. As únicas pessoas com as quais eu podia falar eram justamente as que moravam em minha casa, em meu bairro, meu ambiente que dizia que estava tudo certo, que havia concordado com isso ou se ajustado a isso. (WHISPER, 1988)
     O papel do racismo no recrutamento de mulheres para sistemas de prostituição e como um impedimento para sua saída é complexo e multifacetado. Esse é um problema que sobreviventes tem que começar a apurar com mulheres negras na grande comunidade feminista. Esse discurso deve começar com um entendimento das realidades sociais sob as quais mulheres negras são forçadas a viver em uma cultura de supremacia masculina e branca e com o conhecimento de que quaisquer estratégias para mudança devem vir de mulheres negras, em particular as que sobreviveram a exploração sexual para fins comerciais. Sem esse tipo de liderança, análises racistas e misóginas da prostituição em comunidades negras – como aqueles colocados por Carmen e Moody – vai continuar a facilitar e manter o comércio de mulheres e crianças negras.
     “Prostituição envolve uma igualdade de sexo com poder” afirma COYOTE. Mas ao invés de reconhecer o poder que os cafetões e clientes exercem sobre mulheres usadas na prostituição, COYOTE vê como um arranjo antitético: “Para a mulher/prostituta, esse poder consiste em sua habilidade de definir os termos de sua sexualidade, e exigir pagamento substancial por seu tempo e habilidades” (Priscilla Alexander, 1987: p. 189). Numa distorção grotesca do feminismo, Carmen e Moody afirmam: “Em uma sociedade na qual mulheres estão no limite da igualdade com homens, começando não apenas a gostar de sexo mas a decidir quando e com quem fazê-lo, a prostituta se torna a personificação daquela liberdade que até então era apenas uma fantasia” (Arlene Carmen e Howard Moody, 1985: p. 80). Entretanto, eles expõem seu apoio às vontades sexuais masculinas como medida da liberdade sexual feminina quando descrevem a função básica da prostituição como “...entregar-se para a realização de fantasias de nossos irmãos, pais e filhos...” Pegos de calças curtas, por assim dizer, eles correm de volta para o discurso do liberalismo sexual e ao fazer isso, confundem exploração sexual com escolha sexual, defendendo “o direito da mulher de exercer sua autonomia sexual [que inclui] promiscuidade mercantil” (Arlene Carmen e Howard Moody, 1985: p. 191)
     COYOTE, de Priscilla Alexander, segue nessa linha e nos informa “Independente do que você ou eu pensemos sobre prostituição, mulheres tem o direito de ter a própria opinião sobre trabalhar ou não como prostitutas [incluindo] o direito de trabalhar com um empregador, um terceiro, que pode cuidar de administração e problemas de gestão” (Priscilla Alexander, 1987: p. 211). De fato, a exploração por cafetões é redefinida por Alexander como “uma relação empregador-empregada na qual várias prostitutas entregam parte de ou todos os seus ganhos a um terceiro” (Priscilla Alexander, 1983: p. 13). “Cafetinagem e aliciamento”, COYOTE explica, “são palavras pejorativas usadas para se referir a terceiros que gerenciam prostituição [e como tal] deveriam ser reconhecidos como legítimos negociantes e regulados apenas pelas leis dos negócios e do trabalho, não a lei criminal” (COYOTE/NTFP, 1984-86: p. 3).
     Na tentativa de transformar palha em ouro, o liberalismo sexual argumenta em torno do apoio à prostituição baseado em falsas suposições e mentiras completas. Eles alegam que prostituição é uma manifestação da liberdade sexual da mulher e da igualdade de gênero. Eles alegam que as mulheres escolhem livremente a prostituição como alternativa de carreira. Eles alegam que as mulheres controlam tanto as interações sexuais quanto as financeiras entre elas mesmas e seus clientes. Eles alegam que cafetões são pequeno-empresários que podem e devem ser responsáveis por suas empregadas através de negociações de trabalho.
     Existe aproximadamente um milhão de prostitutas adultas nos Estados Unidos (Charles Winich e Paul Kinsie, 1971: p. 14). Muitas são mulheres negras (Pasqua Scibelli, 1987: p. 120). Muitas têm filhos que dependem delas. A média de idade na qual se entra na prostituição é 14 anos (D. Kelly Weisberg, 1985: p. 94). Outras eram “esposas tradicionais” que escaparam ou foram abandonadas por maridos abusivos e forçadas a se prostituir para sustentar a si mesmas e aos filhos. Além disso, existe aproximadamente um milhão de crianças usadas na indústria do sexo neste país (D. Boyer, 1984). Mesmo que as estimativas variem devido à natureza encoberta da prostituição infantil, nós sabemos que sem intervenção efetiva a maioria dessas crianças vão crescer e se tornar prostitutas adultas.
     Mulheres na prostituição contam com poucos recursos. A maioria não completou o ensino médio.4 Poucas tiveram alguma experiência profissional fora da indústria do sexo.5 A maioria foi vítima de abuso sexual na infância, incesto, estupro e/ou assédio antes de sua entrada na prostituição. WHISPER apontou que a função da instituição da prostituição é permitir que homens tenham acesso sexual incondicional a mulheres e crianças, limitado apenas por seu poder aquisitivo. Uma análise preliminar dos dados coletados pelo Projeto de História Oral de WHISPER isolou táticas culturalmente aceitas de poder e controle que facilitam o recrutamento ou coerção de mulheres e crianças para a prostituição e efetivamente impedem sua fuga. Essas táticas incluem abuso sexual infantil, estupro, assédio, privação educacional, discriminação profissional, pobreza, racismo, classismo, sexismo, heterossexismo, e aplicação desigual da lei. Estas mesmas táticas são usadas por homens individualmente para manter mulheres presas em relacionamentos abusivos fora da prostituição. 
     90% das mulheres que participaram do Projeto de História Oral de WISHPER reportaram ter sido sujeitas a uma excessiva quantidade de abuso físico e sexual durante a infância:  90% haviam sido assediadas por suas famílias; 74% foram sexualmente abusadas entre 3 e 14 anos.7 Deste grupo, 57% foram repetidamente abusadas num período de 5 anos; 43% foram vítimas de dois ou três criminosos; 93% foram abusadas por um membro da família.8 Além disso, 50% deste grupo foram também molestadas por alguém de fora da família (veja, por exemplo, Mimi Silbert, 1982).
     Uma vez na prostituição, essas mulheres e meninas eram vitimizadas tanto por cafetões quanto por clientes. 79% das mulheres entrevistadas foram espancadas por seus cafetões. 74%  reportaram agressões de clientes; destas, 79% reportaram ter sido espancadas por clientes e 50% reportaram estupros. 71% destas mulheres foram vítimas de múltiplas agressões de clientes. (Essas conclusões são compatíveis com Mimi Silbert, 1982; Diana Gray, 1973. As condições as quais essas mulheres foram submetidas na prostituição replicam o abuso que elas sofreram nas mãos de seus pais e maridos. 
__________________
¹Women Hurt In Systems of Prostitution Engaged in Revolt (Mulheres Machucadas em Sistemas de Prostituição Envolvidas em Revolta).
²Prostitutas “de rua”, prostitutas de luxo, ou serviços de acompanhante, saunas, casas de massagem, etc.
³Alexander, que nunca esteve na prostituição, é o diretor e porta-voz do NTFP e COYOTE. Nenhuma das organizações têm membros visíveis ou conselho de diretores. Nenhuma das organizações produziu pesquisas originais para validar suas alegações. Ambas as organizações dividem o mesmo endereço e número de telefone, eu vou assumir que elas são, de fato, o mesmo reflexo da filosofia de Alexander. 
4Mary Magdalene Project, Reseda, Califórnia (1985); Operation De Novo, Minneapolis; WHISPER Oral History Project (1988).
5Council for Prostitution Alternatives, Portland, Oregon; Genesis House, Chicago; WHISPER, Minneapolis; PRIDE, Minneapolis.
6 O Projeto de História Oral é uma pesquisa em andamento projetada para documentar experiências comuns de mulheres usadas na prostituição. Participantes respondera uma única entrevista com duração de 2 a 3 horas que foi transcrita para análise de dados. Conclusões preliminares são baseadas em 19 entrevistas com mulheres com idades entre 19 e 37 anos.
7Destas, 36% foram vítimas de estupro
850% foram abusadas por pais biológicos, adotivos ou padrastos