terça-feira, 13 de setembro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 1] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

PRÁTICAS CULTURAIS DANOSAS
     O conceito da ONU de práticas culturais/tradicionais danosas tem como objetivo identificar práticas que são culturalmente toleradas como formas de violência e discriminação contra mulheres. O conceito é conservado na muito importante e única convenção “de mulheres” – a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulheres (CEDAW; ONU, 1979). O artigo 2(f) da CEDAW determina que partidários da Convenção irão “tomar todas as medidas apropriadas, incluindo legislativas, para modificar ou abolir leis, regulações, costumes e práticas existentes que constituem discriminação contra mulheres”. O CEDAW também instrui os Estados que fazem parte a adotar medidas como:
     Modificar padrões culturais e sociais de conduta masculina e feminina, visando atingir a eliminação de preconceitos e hábitos e todas as outras práticas baseadas na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer um dos sexos ou papéis estereotipados para homens e mulheres
(ONU, 1979, art. 5(a))
     A definição de práticas habituais aqui é suficientemente extensa para incluir práticas de beleza. Práticas de beleza são o principal instrumento através do qual a “diferença” entre os sexos é criada e mantida. Elas criam o papel estereotipado de objetos sexuais e de beleza para mulheres, que têm que gastar muito tempo e dinheiro em maquiagem, penteados, depilação, cremes e loções, moda, botox e cirurgia cosmética. Homens se envolvem na maioria das práticas de beleza descritas neste livro apenas pela satisfação sexual que ganham com a travestilidade masoquista. Não é exigido deles que usem maquiagem para trabalhar, ou saltos altos para agradar a classe sexual dominante. Na verdade, como veremos no Capítulo 3, a travestilidade masculina causa consideráveis problemas para mulheres ao invés de estimular a excitação sexual. A não ser que aceitemos que as mulheres são biologicamente programadas para adotar práticas de beleza, estas precisam ser compreendidas como práticas culturais que são exigidas de mulheres. Todas as práticas exigidas de uma classe sexual ao invés da outra podem ser examinadas por seu papel político em manter a dominação masculina.
     O conceito de práticas culturais/tradicionais danosas foi refinado em alguns documentos da ONU nos anos 90. Uma definição estendida de práticas tradicionais danosas é oferecida em um documento da ONU de 1995:
     Mutilação genital feminina (FGM); alimentação forçada de mulheres; casamentos muito cedo; os vários tabus ou práticas que impedem mulheres de controlar sua própria fertilidade; tabus nutricionais e tradicionais métodos de parto; preferência pelo filho homem e suas implicações no status da menina; infanticídio feminino; gravidez prematura; e dote
(ONU, 1995, pp. 3-4)
     Algumas das práticas descritas no documento têm analogias no ocidente. Alimentação forçada, por exemplo, que prepara meninas para o casamento em culturas nas quais corpos gordos são considerados atraentes por homens, carrega algumas semelhanças com as práticas de beleza ocidentais. É instrutivo compará-la com o que o que aparentemente é seu oposto, passar fome, prática mais provavelmente adotada pelas meninas e mulheres ocidentais para se aproximar do padrão cultural de atratividade. Na cultura ocidental mulheres estão sujeitas a restringir a alimentação por semanas ou meses para caber em seus vestidos de casamento ao invés de aumentar o consumo de alimentos. O documento explica de forma útil como tais práticas foram originadas e isso pode iluminar as origens das práticas de beleza também.
     Práticas culturais danosas são, de acordo com a definição da ONU, prejudiciais à saúde de mulheres e meninas. Os consequentes danos à saúde de práticas como mutilação genital feminina são bem documentados (Dorkenoo. 1994). O dano resultante das práticas de beleza no ocidente pode não ser tão imediatamente claro ou severo. Entretanto, existe considerável evidência do prejuízo à saúde consequente de práticas de cirurgia cosmética como implante nos seios (Haiken, 1997), comum no ocidente. As consequências psicológicas danosas das práticas de beleza não estão documentadas porque tais práticas não são consideradas problemáticas, mas provavelmente são considerável parte na construção da feminilidade subordinada da mulher.
     A concentração nas consequências na saúde de tais práticas surge da tendência do ocidente a querer que o dano seja sujeito a fácil medição. O dano ao status das mulheres como cidadãs iguais é menos fácil de medir mas é um provável resultado de todas as práticas culturais baseadas em subordinação feminina. O trabalho de Ruth Lister sobre cidadania feminina, por exemplo, sugere que o papel de dona de casa e as exigências provenientes dele de que mulheres exerçam várias formas de trabalho não remunerado prejudica severamente o status das mulheres como cidadãs enquanto apoia a cidadania masculina (Lister, 1997). O trabalho extra que mulheres realizam em práticas de beleza e os efeitos dessas práticas nas formas em que elas podem ocupar o espaço público, sentir sobre si mesmas, e intervir na vida pública, podem ser incluídos nesta análise. O trabalho de Nirmal Puwar sobre a experiência de membros femininos no parlamento do Reino Unido mostra que a prática da feminilidade na aparência é vital para elas quando tentam sobreviver naquela cultura extremamente masculina (Puwar, 2004). Uma mulher membro do parlamento que ela entrevistou explica que mulheres são investigadas e marcadas como objetos sexuais e que “a sexualidade das mulheres as acompanha o tempo todo” (Puwar, 2004, p. 76). Os membros do parlamento estão, Puwar argumenta, “sob pressão para reproduzir diferenças de gênero, através de formas materializadas de formas corporais de vestimenta, enfatizando uma forma aceitável de aparência feminina” (p. 176). Um impacto é que elas sofrem constantes comentários, mas é provável que existam efeitos mais adiante, não examinados aqui, de ter que ser tão clara e proeminentemente mulheres, vestindo o estigma desconfortável de sua condição subordinada enquanto procuram ser efetivas no gorverno.
     O documento da ONU diz que práticas culturais danosas são, “consequência do valor colocado em mulheres e meninas pela sociedade. Elas persistem em um ambiente onde mulheres e meninas têm acesso desigual à educação, saúde, bens, e emprego” (ONU, 1995, p.5) Em culturas ocidentais o valor colocado em mulheres e meninas é claramente diferente do colocado em homens humanos. Acesso desigual à educação pode não ser um problema tão grande mas acesso desigual a bens e empregos persiste. A média semanal do salário total individual para mulheres no Reino Unido em 2000/1, por exemplo, era £133, comparado a £271 para homens (Carvel, 2002). O valor mais baixo de mulheres e meninas é demonstrado em violência doméstica e todas as outras práticas de violência contra mulheres e meninas, na existência da pornografia e outras formas da indústria do sexo. Práticas de beleza ocidentais, eu sugiro, surgem desse valor menor. Maquiagem e sapatos de salto alto, labioplastia e implantes nos seios são resultado do valor colocado nas mulheres e meninas ocidentais, no qual os corpos das mulheres são modificados e decorados para mostrar que mulheres são membros da classe subordinada que existe para o prazer masculino.
     Outro critério que o documento da ONU dá para o reconhecimento de práticas culturais/tradicionais danosas é que elas “refletem valores e crenças mantidas por membros da comunidade por períodos que frequentemente abrangem gerações” e que são “para benefício dos homens” (ONU, 1995, p. 3). Práticas de beleza refletem valores e crenças de longa data sobre mulheres, ainda que as práticas as quais mulheres estão sujeitas mudem com o tempo. A exigência de que mulheres alterem e adornem seus corpos pelo bem da “beleza” não muda, por exemplo, ainda que os corsets como instrumento de modelagem da anatomia feminina para ênfase dos seios tenha cedido lugar para implantes de seios (Summers, 2001). A ideia de “beleza” como algo que mulheres devem incorporar para a excitação sexual masculina, seja natural ou artificialmente, está profundamente engendrada na cultura ocidental.
     As práticas de beleza podem razoavelmente ser entendidas como sendo para benefício dos homens. Mesmo que mulheres no ocidente às vezes digam que escolhem se envolver em práticas de beleza para benefício próprio, ou para outras mulheres e não para homens, os homens se beneficiam de várias formas. Eles ganham a vantagem de ter seu status de classe sexual superior demarcado, e a satisfação de ser lembrados de sua superioridade toda vez que olham para uma mulher. Eles também ganham a vantagem de ser sexualmente estimulados por mulheres “lindas”. Essas vantagens podem ser resumidas pela compreensão de que é esperado que mulheres estejam sempre “complementando” e “cumprimentando” homens. Mulheres complementam homens por ser o sexo “oposto” e subordinado. Mulheres cumprimentam homens estando preparadas para fazer o esforço de enfeitar a si mesmas para a excitação sexual masculina. Dessa forma, homens podem se sentir com a masculinidade definida e bajulados pelos esforços das mulheres e, se as mulheres estão usando saltos altos por exemplo, aguentam dor para a satisfação deles. As mulheres que recusam as práticas de beleza não oferecem nem complemento nem cumprimento e sua resistência pode ser profundamente ressentida por membros da classe sexual dominante.
     Práticas culturais danosas “persistem” como o documento da ONU nos diz, “porque não são questionadas e assumem uma aura de moralidade nos olhos de quem as pratica” (ONU, 1995, p. 3). Práticas de beleza no ocidente são certamente raramente questionadas. Elas são entendidas como naturais e inevitáveis, justificadas através da história e da cultura como algo inerente à biologia feminina (Marwick, 1988). A rejeição dessas práticas cria raiva e zombaria, como referências a feministas como incendiárias de sutiã, feias, de pernas peludas, que não conseguem arranjar um homem. Práticas de beleza ocidentais possuem a moralidade da natureza. Mulheres que falham em praticá-las podem ser vistas como “perdidas”, vergonhosas, desnaturadas e uma ameaça ao tecido social.
     A relatora especial da ONU sobre violência contra a mulher, Radhika Coomaraswamy, explica que as tentativas dos Estados de modernizar suas economias frequentemente deixam intactos os abusos dos direitos das mulheres em forma de práticas tradicionais (Coomaraswamy, 1997). No ocidente houve um considerável desenvolvimento do que, na compreensão ocidental, representa economia, tecnologia e democracia “modernas”, e ainda assim as práticas de beleza que são indiscutivelmente um dano considerável a mulheres e meninas prosperam e formam a base de indústrias muito significativas. Ao invés de a economia moderna diminuir de alguma forma as práticas danosas, ela as explora em cosméticos e moda por exemplo, para gerar lucros muito consideráveis. Dessa forma a economia moderna aumenta muito a dificuldade de eliminar práticas danosas. The Economist estimou que a indústria global da beleza em maio de 2003 valia 160 bilhões de dólares (The Economist, 2003).
     Em 2002, Coomaraswamy produziu um novo e longo relatório sobre práticas culturais danosas. De forma geral o relatório segue o discurso ocidental de documentos anteriores, entretanto as práticas de beleza ocidentais têm um parágrafo inteiro dedicado a elas aqui. O relatório diz que “Em muitas sociedades, o desejo pela beleza tem frequentemente afetado mulheres de diversas formas” (Coomaraswamy, 2002, p. 31). Isso enfoca especificamente práticas de beleza no ocidente na forma com que exigem magreza, “No mundo ocidental do século XXI o mito de beleza no qual o tipo físico feminino magro é o único aceito é imposto a mulheres pela mídia por meio de revistas, propaganda e televisão”, e pela propaganda sexista. O que o relatório chama de “cultura de ideais impraticáveis” resulta, segundo ele, em “muitas práticas que causam abusos ao corpo feminino” e separa para mencionar “cirurgia cosmética em toda parte do corpo feminino” que “leva a problemas de saúde e complicações para muitas mulheres”. Essa menção, ainda que apressada, pode ser uma indicação de que a necessidade de incluir algumas práticas de beleza ocidentais entre aquelas que Coomaraswamy descreve como violações aos “direitos humanos das mulheres à integridade do corpo e à expressão, minando valores essenciais de igualdade e dignidade” está sendo reconhecida (2002, p. 3).
     Entretanto, ela inclui apenas práticas não ocidentais na categoria que identifica como mais sérias. Essa é a categoria de “práticas culturais que envolvem ‘dor e sofrimento severos’ para a mulher ou criança, que não respeitam a integridade física do corpo feminino” e “devem receber máximo escrutínio e agitação internacional” (Coomaraswamy, 2002, p. 8). Isso inclui “mutilação genital feminina, assassinato por honra, Sati ou qualquer outra forma de prática cultural que brutaliza o corpo feminino” (p. 8).

     Existem algumas práticas não ocidentais descritas no relatório que podem ser comparadas a práticas muito similares que estão rapidamente se tornando componentes comuns da beleza ocidental. Por exemplo, nos é dito que “As mulheres Tutsi em Ruanda e Burundi seguem a prática de alongamento dos lábios vaginais com o objetivo de permitir que as mulheres tenham maior prazer sexual” (Coomaraswamy, 2002, p. 12). Isso tem algo em comum com a prática da labioplastia no ocidente. Na cirurgia cosmética de labioplastia, cirurgiões cortam partes dos pequenos lábios para “embelezar” as genitálias femininas. Isso não é uma prática que pode ser explicada ou justificada em termos de tradição, porque é de origem recente, mas em grau de mutilação, dor e potenciais complicações se assemelha a mutilação genital feminina e forma um alarmante contraste com o costume Tutsi. No ocidente, na literatura de propaganda de cirurgiões de labioplastia, é dito que lábios longos inibem o prazer sexual em geram vergonha. Coomaraswamy usa a linguagem da dignidade humana para descrever o dano das práticas tradicionais. É dito que tais práticas violam a dignidade feminina (Coomaraswamy, 1997). O conceito de “dignidade” feminina é importante e a ideia de “dignidade” humana é fundamental para a teoria e prática dos direitos humanos. Essa é uma medida útil com a qual comparar práticas de beleza como labioplastia. Apesar de haver analogias no ocidente a muitas das práticas não ocidentais descritas no relatório (Wynter et al., 2002), elas provavelmente são omitidas na literatura da ONU. Isso se deve, eu sugiro, a um discurso ocidental que identifica práticas culturais danosas no ocidente como um reflexo da escolha das mulheres ao invés de ser reforçadas por ameaça de punição ou decreto religioso.