quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

[CAPÍTULO 3, PARTE 2] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

O CONSERVADORISMO DO CROSSDRESS

      Quando homens são “travestidos” a nua realidade da dominância masculina torna-se clara. Esse comportamento masculino surge do poder e privilégio dos homens e cria graves problemas para esposas. As esposas de crossdressers acham o comportamento dos homens profundamente perturbador e sofrem para manter seus casamentos porque terminar o casamento e tornarem-se mulheres pobres e solitárias parece, para muitas, uma alternativa pior. Como homens que se travestem tendem a ser conservadores em seus valores, assim são, ao que parece, suas esposas. As esposas se sentem traídas e usurpadas quando seus maridos de repente começam a reproduzir feminilidade. Peggy Rudd é a autora de My Husband Wears My Clothes  (Meu Marido Veste Minhas Roupas) (1999), que é um manual de instruções para as esposas infelizes de como podem reprimir sua apreensão e seus próprios interesses e servir generosamente a excitação de seus maridos. Ela diz que crossdressers provavelmente são homens tradicionais de muitas conquistas. Peggy absorveu a ideologia do movimento transgênero que esse interesse sexual masculino em particular é transgressor e revolucionário. Ela diz “Eu acredito que crossdressers são uma geração à frente da sociedade na evolução da verdadeira identidade de gênero” (Rudd, 1999, p. 25). Eles estão à frente, aparentemente, porque podem reproduzir tanto a feminilidade quanto a masculinidade. Porém sua prática não parece mudar muito o mundo quando examinada de perto.
      Rudd nos diz que crossdressers, “De dia, podem comandar uma corporação com centenas de empregados. De noite podem ver os traços positivos da feminilidade emergindo” (1999, p. 43). Esses homens mantém o status que a dominância masculina fornece a eles e podem aproveitar as excitações do masoquismo ao adotar roupas “de mulher” quando chegam em casa. Mulheres não estão em posição de estar tão “à frente”. Elas pouco provavelmente estarão comandando corporações em primeiro lugar, e não têm maridos devotados que irão carinhosamente frequentar sua secreta prática da masculinidade. Rudd descreve crossdresser como uma prática de travestilidade de fim de semana: “Após um final de semana se vestindo como mulher, seus pés a estavam matando e ela parecia ansiosa para voltar para casa para sua rotina de usar um terno de negócios, camisa engomada e sapatos confortáveis” (1999, p. 111). Peggy explica que, “Muitos crossdressers são muito bem sucedidos como homens” e mulheres podem ajudá-los em seu sucesso, como esposas têm tradicionalmente feito: “Eu conheço crossdressers que são pilotos, contadores, médicos, psicólogos e geólogos. Muitos são profissionais muito bem sucedidos (...) A esposa pode ajudar seu marido ao dar apoio em sua carreira e a cobranças que a carreira faz dele” (p. 120). “Para muitos crossdressers”, ela diz, “ser feminino é uma boa liberação das pressões sentidas no trabalho. Por causa disso, ser afeminado o ajuda a ter mais sucesso como homem” (p. 120). As esposas podem até mesmo, ela diz, ajudar seus maridos a exercer papéis de liderança em organizações de apoio a crossdressers. Peggy, e as esposas as quais ela aconselha, não parecem ter carreiras, bem sucedidas ou não. Elas são esposas tradicionais que apoiam as carreiras de seus maridos.
      Rachel Miller, que se identifica como um crossdresser heterossexual e um homem de família bem casado, cristão, orgulhosamente afirma o conservadorismo dos crossdressers, “Eu descobri bem educados, brilhantes, atenciosos, espirituais homens de família que compartilham sentimentos similares. Eram tantos de nós que éramos cidadãos sólidos de acordo com qualquer definição razoável, que era inconcebível que pudéssemos ser todos pervertidos” (Miller, 1996, p. 54). Ele, como muitos crossdressers, é firme em não ser visto como transsexual ou homossexual. Ele não é um pervertido. É um quebra-cabeças que a prática desses homens seja interpretada como transgressora ou revolucionária pelo movimento transgênero quando é tão americano médio. Peggy Rudd estima que o número de homens que fazem crossdress nos Estados Unidos seja 15 milhões. Se isso estiver correto então não é uma atividade de minorias mas uma mera parte dos valores tradicionais da família americana. É designado que mulheres sejam femininas mas homens podem ser masculinos para ganhar dinheiro e status, e femininos em casa quando suas esposas servem suas fantasias sexuais de masoquismo e fornecem uma audiência. A prática da feminilidade por homens mantém o sistema de dois gêneros e dessa forma firmemente mantém a dominância masculina em seu lugar ao invés de exterminá-la.

O EFEITO NAS ESPOSAS

      Peggy usa sua fé cristã para permitir que sacrifique seus interesses  para servir a excitação sexual do marido. Em abnegação ela diz “Eu sabia que era errado julgar meu marido” (Rudd, 1999, p. 54). Entretanto sua motivação parece ser a falta de alternativa para uma mulher de meia-idade cujos interesses sempre foram subordinados aos do marido. O conselho que ela dá em sua “Carta aberta à esposa de um crossdresser” torna claro o motivo pelo qual é difícil para uma mulher simplesmente ir embora: “Deixe-me dizer enfaticamente que a grama não é mais verde do outro lado da cerca. É um mundo de homens lá fora (...) A vida não é fácil para uma mulher sozinha” (Rudd, 1999, p. 69). As oportunidades para mulheres no mundo fora de seus casamentos são restritas pela dominância masculina mas é um mundo de homens dentro de seus casamentos também, no qual é exigido que sirvam os interesses sexuais de seus maridos não importando o quão perturbadores elas os achem.
      Uma dificuldade das esposas é que seus maridos, após “sair do armário” como crossdressers, apenas façam sexo quando vestidos com roupas de mulher e esperem que suas esposas se refiram a eles como mulheres. As esposas não necessariamente querem ser “lésbicas” como são chamadas, apesar de a real experiência do lesbianismo seja bem diferente de ser forçada a se relacionar com um homem de vestido. É exigido de esposas que abandonem seus próprios desejos sexuais, que provavelmente erotizam a subordinação feminina e responder a dominância masculina já que essa é a forma para a qual mulheres são treinadas para ser sexualmente e essas mulheres são conservadoras em seus gostos (ver Jeffreys, 1990). Seus maridos não exercem mais a dominância masculina no quarto ou ao cortejar suas esposas mas esperam que elas se ajustem para servir sua nova “feminilidade”. Uma carta à Peggy mostra até onde uma mulher pode ser preparada para ir para superar seus próprios interesses e continuar a servir seu marido:
Estou fazendo todo o possível para ajudá-lo. Por exemplo, quando ele volta do trabalho para casa após um dia cansativo, suas roupas femininas já estão prontas para ele (...) Eu sei em meu coração que ainda há espaço para melhorar minha atitude (...) Ele precisa de algum tipo de adereço para ficar excitado sexualmente (...) ele precisa estar vestindo algum tipo de roupa feminina quando fazemos amor (...) Eu não sou lésbica. Eu não gosto que me façam sentir como uma.
(Rudd, 1999, p. 59)
      Até mesmo Peggy acha o papel sexual invertido esperado dela pela nova persona de seu marido muito difícil. “Esposas”, ela diz, “têm dito que se sentem traídas sexualmente. Em nosso relacionamento isso foi verdade. Uma vez que Melanie chegou não havia mais como fazer amor com Mel (...) Descobrir que eu teria que fazer amor com Melanie foi realmente o grande choque” (1999, p. 118). Crossdressers cujas esposas não são coniventes, provavelmente, ao que parece, gritam e batem nelas. Peggy aconselha maridos contra esses comportamentos se querem que suas mulheres aceitem suas práticas (p. 81) – ela faz com que as esposas se sintam culpadas ao dizer a elas “se ela resiste ao desejo do marido de fazer crossdress ela pode experimentar uma dor insuportável. O desejo pelo crossdress não vai embora. Não há cura!” (p. 81) Dessa forma as esposas devem aceitar.
      O papel feminino sob a dominância masculina requer muitas variedades de serviço a homens; isto é, trabalho doméstico e cuidado de crianças, trabalho emocional e serviço sexual, bem como a performance da feminilidade para a excitação do homem. Os crossdressers apenas querem a parte da “feminilidade” no papel feminino e não fazem isso para o prazer das mulheres, muito pelo contrário. Dessa forma, esposas reclamam que seus maridos passam horas se arrumando enquanto elas fazem o trabalho doméstico como sempre. Peggy registra o que chama de um comentário parafraseado de esposas que ela frequentemente ouve “Ele diz que quer ser feminino e lindo, então se arruma na frente do espelho enquanto eu limpo a casa. Ele sai do quarto parecendo a Miss América e eu pareço com uma mulher que aparece no comercial de Ajax” (Rudd, 1990, p. 76).
      Outra grande dificuldade que as esposas têm de enfrentar é o fato de que seus maridos usurparam seu papel. As esposas foram treinadas desde a infância para exercer a feminilidade e podem sentir que dominam esse comportamento muito bem. Elas esperam as recompensas que vêm com isso, tais como serem tratadas romanticamente pelo marido “masculino”. Isto é, afinal, como a heterossexualidade tradicional deveria funcionar. Mas quando o marido começa a fazer crossdress ela está em risco de perder seu senso próprio e papel na vida. Peggy explica, “Eu tenho ouvido sobre esposas se sentindo invejosas quando o marido sai do closet mais bonito que ela” (Rudd, 1999, p. 122). Charles Anders diz que uma de suas parceiras mulheres “queria ser ‘a menina do relacionamento’ e eu tive medo de usurpar seu lugar” (Anders, 2002, p. 132). “Feminilidade” pode ser uma perda de tempo e entediante mas provavelmente é, após uma vida inteira de trabalho, a base da identidade da mulher e de seus sentimentos de valor próprio. Quando o marido o faz melhor ela perde o significado de sua existência. Ela se torna supérflua, e a prática da feminilidade na qual ela esteve envolvida durante toda a vida pode parecer vazia. Após 50 anos de feminilidade ela pode se perguntar sobre o sentido de tudo isso. As gratificações que a feminilidade deveria trazer desaparecem enquanto “Ela pode imaginar a vida sem mais jantares românticos com danças e sem mais noites fora com o homem de sua vida” (Rudd, 1999, p. 119). Algumas esposas, de acordo com Peggy, sofrem com humilhação extra por ver seus maridos continuarem a fazer o papel masculino na relação com outras mulheres na vida social ou profissional enquanto a esposa têm de lidar com calcinhas da Fredericks of Hollywood. Isso pode parecer muito injusto.

TRANSFEMINILIDADE – TRANSGREDINDO OU MANTENDO O GÊNERO?

      Mulheres não estão, como homens, em posição de “escolher” a feminilidade. Ela é forçada nas mulheres e uma marca de seu status inferior. Não é um brinquedo sexual para mulheres e sim a maneira pela qual é exigido que modelem seus corpos, suas emoções e suas vidas. Não é fácil ou mais “natural” para mulheres aprender as práticas de feminilidade do que é para homens. Meninas aprendem que devem se envolver em tais práticas enquanto, geralmente na adolescência, entendem que devem ser “femininas” e desistir de atividades de garoto em favor de sentar discretamente e esconder seus músculos. Carole Bouquet, a face francesa da Chanel no final dos anos 1990 e atriz de filmes, descreve o início da “feminilidade” como algo difícil que de repente acontece e interrompe sua carreira como tomboy, “Ela era uma tomboy com cabelo curto. Sua feminilidade apenas apareceu, ela diz, na adolescência, e então ela se sentia estranha sobre isso – uma massa de autoconsciência e nervos” (Swain, 1998, p. 6). A feminilidade é representada como algo natural que se sobressai através da camada de jeito de garoto. O resultado de passar por essa transição é que ela é descrita por homens como o que escreveu seu perfil como alguém que exerce “magnetismo” sobre homens e “ela pode ser selvagem e sofisticada, ostentosa e austera”. Para ser “magnética” ela teve que parar de subir em árvores e andar de bicicleta.
      Muitas lésbicas relatam sobre ter sido tomboys na juventude, mas também a maioria das mulheres que acabam sendo heterossexuais (Rottnek, 1999). O processo de transição entre a condição na qual uma menina pode brincar com meninos, usar seu corpo forte em atividades físicas e não pensar sobre a própria aparência para a “feminlidade” na qual ela deve aprender a andar em sapatos que deformam e roupas que a apertam e constantemente pintar e checar o rosto para ter certeza de que o rímel está intacto, é algo agressivo e propenso a causar, como causou a Bouquet, “autoconsciência e nervos”. Suas mães, revistas para meninas e mulheres, e suas amigas, as treinam e há muito o que aprender. Meninas têm estúdios de transformação também, mas estes provavelmente são os quartos de parentes e amigas ao invés de  estabelecimentos comerciais acessados via internet. Meninas têm de praticar a feminilidade até que pareça “natural” para criar a “diferença sexual”.
      Apesar de a nua realidade da dominância masculina parecer claramente revelada pelo exame da transfeminilidade, a prática tem sido apoiada e até proclamada progressiva na última década pelos pesos pesados da teoria queer. A maior diferença entre o projeto de gênero queer e o feminista está no que deve ser feito com o gênero após a revolução. Teóricas feministas como Monique Wittig (1996), Janice Raymons (1994), Catharine MacKinnon (1989), esperam que o gênero seja abolido, ou simplesmente inimaginável em um futuro igualitário. As estrelas da teoria queer, por outro lado, procuram manter o gênero com o objetivo de obter excitação sexual. Uma delas é a teórica queer Judith Halberstam.
      Judith Halberstam promove o valor da “masculinidade feminina” e do direito das mulheres de acessarem este, na visão dela, bem social. Halberstam não faz uma análise política que a permitiria ver que a masculinidade é produto da dominância masculina, na verdade ela repudia tal noção e diz que homens pode, fazem, e têm historicamente feito isso tão bem quanto homens. Ela odeia a feminilidade, entretanto, e é muito consciente do quanto as vidas de jovens mulheres são reduzidas e oprimidas por essa aquisição. O único propósito que ela vê para a feminilidade é sexual: “Me parece que pelo menos no início da vida, meninas podem evitar a feminilidade. Talvez a feminilidade e seus acessórios possam ser escolhidos mais adiante, como um brinquedo sexual ou um penteado” (Halberstam, 1998, p. 268). Pat Califa é outro expoente da masculinidade feminina que argumenta que “gênero” deve ser mantido como um brinquedo sexual (Califa, 1994). A prática de Califa da masculinidade começou no sadomasoquismo mas agora se estendeu para o transsexualismo e ela se renomeou como Patrick. A teórica transgênera e ativista Kate Bornstein argumenta que o sadomasoquismo em si é a mais extrema e excitante maneira de fugir da diferença de poder entre gêneros (Bornstein, 1994).
      A teoria queer tem, compreensivelmente, sido utilizada para apoiar a prática da feminilidade por homens. No fim das contas tanto teóricos queer que promovem o transgenerismo quanto os homens que acessam o pornô travesti na internet têm um interesse parecido no “gênero”. Eles estão todos interessados em absorver a performance do comportamento de gênero em suas excitações sadomasoquistas. A feminilidade é excitante porque é o comportamento de subordinação que não pode ser preservado.
      Ao final deste capítulo cabe retornar aos pensamentos de Janice Raymond que fornece as ferramentas para a análise feminista do transsexualismo em The Transsexual Empire (1994). Ela explica o motivo pelo qual a análise do transsexualismo é tão útil para feministas, dizendo que coloca “estereótipos de gênero no palco (...) para que todos vejam e examinem em um corpo de natureza diferente” (Raymins, 1994, p. 184). Mas, ela diz, é possível descuidar do fato “de que esses estereótipos, comportamentos, e descontentamentos de gênero são vividos todos os dias por corpos ‘nativos’ (...) eles deviam ser confrontados na sociedade ‘normal’ que criou o problema do transsexualismo para começar” (p. 185). O resto deste volume se concentra no problema da feminilidade no que Raymond chama de corpos “nativos” 

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