A CULTURA
OCIDENTAL OFERECE “ESCOLHA”?
Práticas
culturais danosas são vistas como existentes em culturas nas quais mulheres não
têm escolha. A ideia de que práticas tradicionais danosas “escolhidas” podem ser
distintas das forçadas não se encaixa bem na compreensão das Nações Unidas do
que constitui tais práticas. A noção de práticas culturais danosas é baseada na
ideia de que a cultura pode coagir e que mulheres e meninas não são agentes
livres capazes de escolher. Nos anos 90, no ocidente, entretanto, a ideologia
do liberalismo ocidental e os sistemas econômicos de livre mercado do
capitalismo individual defendidos por ele, foram forças potentes na transformação
de críticas políticas que reconhecem desigualdade e opressão como limites à escolha e à oportunidade (ver Jeffreys, 1997b). Essa ideologia é tão abrangente
que afetou a discussão de Radhika Coomaraswamy sobre práticas danosas fora do
ocidente em seu relatório de 2002. O relatório inclui códigos de vestimenta que
impõem roupas que cobrem o corpo de mulheres como a burca como práticas
culturais danosas. Elas são danosas porque “restringem o movimento das mulheres
e seu direito de expressão” e porque são prejudiciais à saúde, “Tais
vestimentas podem causar asma, aumento da pressão sanguínea, problemas na
audição ou visão, assaduras na pele, queda de cabelo e um declínio geral na
condição mental” (Coomaraswamy, 2002, p. 28). Recentemente outra preocupação
com a saúde surgiu. Médicos escreveram em Lancet
sobre o aumento da incidência de raquitismo, condição na qual os ossos ficam
fragilizados devido a falta de vitamina D, explicando que, no oriente médio,
existem “muitas mães com a forma adulta de raquitismo e crianças com raquitismo
também” como resultado de mulheres sendo obrigadas a cobrir seus corpos,
ficando sem receber luz natural do sol em sua pele. (Lichtarowicz, 2003).
No
entanto, Coomaraswamy comenta, tais códigos de vestimenta só são um problema
quando são “impostos sobre as mulheres e se a punição é autorizada para quem
não usa a incômoda vestimenta” porque nesse caso “os direitos de escolha e
expressão são claramente negados” (2002, p. 29). A noção de escolha que ela
emprega não engloba os tipos de pressão para vestir roupas restritivas que é discutido
mais tarde neste capítulo, como assédio em locais públicos que só pode ser
aliviado dessa forma. Cobrir-se pode reduzir este tipo de atrito mas não é
consequentemente um sinal de liberdade como é uma acomodação à opressão. A
introdução de Coomaraswamy à noção de “escolha” é preocupante pois dilui um dos
aspectos mais úteis da noção de práticas culturais danosas, a irrelevância de
tais noções ocidentais onde expectativas e práticas culturais agem como
executores.
Mesmo
a bem respeitada filósofa política feminista estadunidense, Martha Nussbaum,
usa o argumento da “escolha” para distinguir práticas de beleza ocidentais, as
dietas em particular, das de fora do ocidente. Nussbaum argumenta que práticas
como mutilação genital feminina (FGM) não podem ser vistas como “moralmente
equivalentes a práticas de dieta e modelagem corporal na cultura americana”
(Nussbaum, 2000, p. 121). Ela afirma que as diferenças entre a FGM e dietas são
tão consideráveis que invalidam tal discussão. As distinções que ela faz se relacionam
a questão da escolha, o que ela considera prevalecer no ocidente em relação a
dietas, e ao grau de prejuízo à saúde envolvido nas práticas. Ela diz que FGM é
“forçada, enquanto dietas em resposta a imagens culturalmente construídas são
uma questão de escolha, mesmo que a persuasão seja sedutora” (2000, p. 122).
Ela argumenta que a FGM é irreversível enquanto as dietas não são. Ela diz que
a FGM é feita em condições perigosas e insalubres, diferente das dietas, e
considera que os problemas de saúde ligados à FGM, que podem incluir a morte,
são tão mais severos que a comparação é inapropriada. Nussbaum também diz que
porque a FGM é usualmente feita em crianças, consentimento não é uma questão.
Ela detalha as distinções no grau de instrução feminino nos Estados Unidos e em
alguns países da África como base para argumentar que mulheres africanas não
têm acesso à escolha e consentimento da mesma forma que mulheres dos Estados
Unidos têm. Ela diz que FGM significa “a perda irreversível da capacidade para
um tipo de função sexual” que é, presumivelmente, uma perda maior do que a
ligada a dietas. Ela argumenta, finalmente, que FGM está “inegavelmente ligada
a costumes de dominação masculina” aos quais ela indica que dietas não estão.
Ela tem outros argumentos mais gerais para enxergar a FGM como um abuso mais
significativo dos direitos das mulheres em comparação a práticas de beleza. Ela
diz que feministas nos Estados Unidos têm criticado desproporcionalmente
práticas de beleza ocidentais enquanto dão menos atenção à FGM, e que é dever
das feministas preocupar-se com o destino de suas irmãs fora da cultura
ocidental ao invés de apenas consigo mesmas.
Seria
difícil discordar de Nussbaum que feministas deveriam se preocupar com os
direitos humanos de suas irmãs em outros países. Eu argumentaria, entretanto,
que as críticas feministas ocidentais às práticas culturais danosas em outras
culturas precisam ser fundamentadas em uma profunda crítica a tais práticas em
sua própria cultura. Os argumentos de Nussbaum a respeito do motivo pelo qual a
dieta não deveria ser comparada a FGM não são convincentes. A dieta ocidental
causa danos duradouros à saúde, particularmente quando é levada ao extremo em distúrbios
alimentares que podem causar a morte. Um estudo de 2001 reportado em Lancet, por exemplo, conclui que cinco
(2%) das pacientes com distúrbios alimentares que foram entrevistadas no começo
da pesquisa morreram durante o período seguinte de 5 anos (Bem-Tovim et al., 2001, p. 1254). Similarmente, práticas
de cirurgia cosmética podem levar a sérios problemas de saúde, como Elizabeth
Haiken documenta no caso de implantes de seios (1997). Labioplastia, assim como
FGM, pode levar a dificuldades na funcionalidade sexual. O argumento de
Nussbaum sobre o grau de “escolha” das mulheres pode ser visto como revelador
de um discurso ocidental de acordo com o qual mulheres no ocidente são tão
favorecidas que podem “escolher” e dessa forma quaisquer práticas culturais
impostas a elas não são tão severas como as impostas em algumas culturas
africanas. Este é um problema fundamental no pensamento feminista liberal de
que relações de poder em culturas ocidentais são colocados como simples “pressões”
que mulheres têm a educação para rejeitar (Jeffreys, 1997b).
Algumas
feministas liberais individualistas podem encontrar evidência da “escolha” das
mulheres mesmo nas situações mais improváveis. Uma delas é a prática da
cirurgia de reparação do hímen no ocidente. A cirurgia de reparação do hímen é
feita para criar uma virgindade artificial em mulheres de culturas nas quais
sangrar é um requisito na noite de núpcias para evitar a vergonha que seria
para uma noiva e sua família a perda da “honra”. A penalidade para a perda
da honra pode ser uma “execução por honra” na qual a mulher é morta por membros
homens da família. Imigrantes no ocidente provenientes de tais culturas podem
obter a reparação do hímen pelos mesmos cirurgiões que realizam labioplastia em
mulheres influenciadas pela pornografia a considerar seus lábios vaginais
feios. Em seu artigo sobre a prática da reparação do hímen na Holanda no século
XXI, Sawitri Saharso argumenta que meninas que fazem a cirurgia de reparação do
hímen são “agentes morais que podem escolher” (Saharso, 2003, p. 20).
Feministas deveriam, ela diz, respeitar “as escolhas de outras mulheres, mesmo
que não concordemos com elas. Isso por sua vez significa que disponibilizar a
reparação do hímen é um ato de multiculturalismo e bom feminismo” (p. 21). As
meninas são “agentes moralmente competentes que fazem uma escolha e são capazes
de afirmar suas preferências” (2003, p. 21). A reparação do hímen está
atualmente disponível gratuitamente no serviço de saúde da Holanda e Saharso
considera isso como “uma medida política culturalmente sensível que reconhece o
sofrimento culturalmente informado” (p. 21).
O
conceito de “escolha” que Saharso coloca é tão empobrecido que é difícil
conceber o motivo pelo qual qualquer pessoa o chamaria de “escolha”. Por
exemplo ela cita como base para seu argumento sobre meninas “escolhendo” a
cirurgia de reparação de hímen uma escritora holandesa que diz que pode-se
dizer que elas podem escolher porque elas têm outras opções como deixar a
comunidade:
Ela sugere que deixar a comunidade não necessariamente significa tornar-se uma prostituta, pois existem abrigos na Holanda para meninas e mulheres que fugiram. Dessa forma, é somente quando as meninas querem permanecer na família e na comunidade, e presumindo que a família da menina é impiedosa somo ela pressupõe, é que a operação é a única solução disponível.(citado em Saharso, 2003, p. 19)
Meninas
de comunidades imigrantes provavelmente precisam do apoio de famílias e comunidades
mais do que as que pertencem a cultura dominante. Dessa forma, a afirmação
casual de que meninas seriam capazes de fazer uma escolha razoável entre o status de banidas no qual elas podem ter
que se esconder por uma vida inteira de uma família procurando vingança pela
vergonha causada, e fazer uma cirurgia que as possibilitará permanecer, é
bastante surpreendente. Essas “escolhas” não são equivalentes em suas
implicações e a sugestão de Saharso de que elas deveriam ser consideradas como
tal demonstra a lógica estranha que pode resultar da fetichização da escolha na
teoria liberal ocidental.
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