segunda-feira, 21 de novembro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 3] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

MAQUIAGEM E VÉU: MESMA COISA?

      Ao invés de serem dois lados da mesma moeda de opressão a mulheres, o véu e a maquiagem são mais usualmente vistos como opostos. A maquiagem pode até mesmo ser vista como a alternativa liberal ao uso do véu. Existe aparentemente uma diferença, que é, espera-se que mulheres respeitadas na cultura islâmica cubram suas cabeças e corpos para que homens não se sintam sexualmente tentados, enquanto no ocidente espera-se que mulheres se vistam e usem maquiagem para que os homens se sintam sexualmente tentados e para criar um banquete para os olhos deles. Isso pode parecer uma conexão. Tais expectativas refletem o dualismo tradicional que diz respeito à função das mulheres sob dominação masculina. Mulheres, tradicionalmente, mesmo no ocidente, devem se encaixar nas categorias virgem/vadia. Virgens estão fora dos limites até que se casem e sejam possuídas sexualmente por homens individualmente, enquanto vadias existem para servir homens em geral.
      Infelizmente até mesmo estudiosas do feminismo são algumas vezes incapazes de pensar a respeito de si mesmas fora desse dualismo para imaginar uma forma de vida autônoma para mulheres que não caia nessas categorias. Lama Abu-Odeh, por exemplo, em escritos sobre a readoção do véu em alguns países muçulmanos, diz que suas conclusões como feminista árabe são que “Mulheres árabes podem ser capazes de se expressar sexualmente, para que possam amar, brincar, provocar, flertar e excitar... Nelas, vejo atos de subversão e libertação” (Abu-Odeh, 1995, p. 527). Mas o que ela considera prazeroso, as mulheres que adotaram o véu viram como “mau”. Ao escolher para mulheres o papel de excitar homens ao invés de se cobrir, Abu-Odeh se prende na dualidade que é oferecida para mulheres sob dominância masculina, objeto sexual ou coberto, prostituta ou freira. Existe uma terceira possibilidade: mulheres podem inventar para si mesmas algo novo e fora dos estereótipos da cultura patriarcal ocidental e não ocidental. Mulheres podem ter acesso aos privilégios possuídos por homens de não ter que se preocupar com aparência e poder sair em público sem nada no rosto ou na cabeça.
      Tanto o véu quanto a maquiagem são frequentemente vistos como comportamentos voluntários das mulheres, adotados por escolha, que expressam agência. Mas em ambos os casos existe considerável evidência das pressões surgidas da dominância masculina que causam esses comportamentos. Por exemplo, a historiadora do comércio Kathy Peiss coloca que a indústria de produtos de beleza decolou nos EUA nos anos 1920/1930 pois nessa época as mulheres estavam entrando no mundo público de escritórios e outros ambientes de trabalho (Peiss, 1998). Ela enxerga que mulheres tiveram que se inventar como um sinal de sua nova liberdade. Mas existe outra explicação. Comentadoras feministas da readoção do véu por mulheres em países muçulmanos no final do século XX sugeriram que mulheres se sentem mais seguras e livres para ocupar e se movimentar no mundo público quando cobertas (Abu-Odeh, 1995). Pode ser isso que usar maquiagem signifique, que mulheres não tem o direito automático de se arriscar na vida pública da mesma forma que homens. Maquiagem, assim como o véu, assegura que elas estão mascaradas e não cometendo a afronta de se mostrarem como as cidadãs reais e iguais que deveriam ser em teoria. Maquiagem e véu podem revelar a falta de direitos das mulheres.
      Em alguns casos a adoção do véu é claramente o resultado de força e ameaça de violência. No Irã, cobrir-se é compulsório e forçado pelo Estado. Como Haleh Afshar explica “A desobediência aberta ao hijab e a aparição pública sem ele é punível com 74 chibatadas” (Afshar, 1997, p. 319). Não há sugestão de que mulheres podem “escolher” usar o véu, já que a imposição é tão clara e brutal, “Esses homens (membros do partido de Deus, os Hezbollahis) atacam mulheres que consideram estar inadequadamente cobertas com facas ou armas e elas têm sorte se sobreviverem a tal experiência.” (Afshar, 1997, p. 320). Maquiagem não é imposta com tamanha brutalidade em culturas ocidentais.
      Entretanto, como Homa Hoodfar aponta, o véu pode ser usado por diferentes razões em diferentes países e até em um mesmo país (Hoodfar, 1997). Em algumas situações nenhuma força óbvia é aplicada. Lama Abu-Odeh descreve a readoção do véu. Ela diz que nos anos 1970 mulheres “andavam pelas ruas de cidades árabes usando trajes ocidentais: saias e vestidos abaixo dos joelhos, saltos altos e luvas que cobriam o braço no verão. Seus cabelos geralmente eram expostos e elas usavam maquiagem” (1995, p. 524). Nos anos 1980 e 1990 muitas, mesmo algumas das mesmas mulheres, adotaram o véu, definido aqui como uma cobertura ou lenço na cabeça. Abu-Odeh nos diz que “seus corpos pareciam ser um campo de batalha” entre os valores do ocidente, a “construção capitalista na qual corpos femininos eram ‘sexualizados, objetificados, coisificados’ e a tradicional na qual os corpos femininos eram ‘transformados em bens, em propriedades’ e aterrorizados como garantias da honra (sexual) da família” (p. 524). As mulheres que adotaram o véu eram aquelas que precisavam usar o transporte público para trabalhar ou estudar. Elas estavam menos sujeitas a ser assediadas sexualmente por homens. Em ocasiões em que eram assediadas elas se sentiriam mais confortáveis a contestar se estivessem com o véu, pois não poderiam ser culpadas por ter incitado esse comportamento masculino abusivo. Era mais fácil para as mulheres e meninas que usavam véu se sentirem ofendidas e para os outros se sentirem ofendidos em apoio a elas se fossem vistas como inocentes vítimas que não mereciam tal tratamento. A adoção do véu pode, dessa forma, ser vista como uma forma de aliviar os danos sofridos por mulheres como resultado da dominância masculina. A escolha, todavia, surge da opressão ao invés de indicar agência.
      Hoodfar explica a readoção do véu no Egito onde não existe ameaça de punição brutal. Mulheres que, como Hoodfar coloca, “readotam o véu” tendem a ser de classe média baixa, educadas em universidades e trabalhadoras de colarinho branco no setor público e governamental. As razões dadas por Hoodfar para “readotar o véu” não sugerem que as mulheres tiveram alternativas razoáveis para tomar essa decisão. Uma mulher entrevistada por Hoodfar expressou resistência a ideia de usar o véu antes de se casar, mas na véspera de seu casamento encontrou considerável pressão por parte da família de seu futuro marido contra sair para trabalhar como professora, o que ela foi treinada para e esperava fazer. Seus futuros parentes argumentaram que se ela saísse para trabalhar “as pessoas iriam falar, e sua reputação poderia ser questionada” (Hoodfar, 1997, p. 323). Além disso ela sofreu assédio sexual, “Em ônibus lotados, homens que perderam seu respeito tradicional por mulheres podem molestá-la e claro que isso irá prejudicar seu orgulho e dignidade, bem como de seu marido e irmãos” (p. 323). Para resolver essas pressões ela decidiu se tornar muhaggaba (mulher que usa véu). Isso agradou a família do marido.
      As razões que Hoodfar oferece relacionam-se claramente com as tentativas das mulheres de se acomodar à dominância masculina. O véu, ela diz, demonstra a lealdade da mulher às regras da dominância masculina, “comunica alto e claro à sociedade em geral e a maridos em particular que a que veste está ligada à ideia islâmica de seu papel sexual” (Hoodfar, 1997, p. 323). Mulheres de véu podem trabalhar porque estão demonstrando que ainda respeitam “comportamentos e valores tradicionais”. Mulheres que usam o véu “diminuem a insegurança de seus maridos” e mostram a eles que “como esposas, não estão competindo, mas sim em harmonia e cooperação com eles” (p. 324). Em troca de todos esses sinais de obediência o véu “coloca mulheres numa posição de esperar e exigir que seus maridos honrem e reconheçam seus direitos islâmicos”. Dessa forma os maridos podem deixar que suas mulheres mantenham o dinheiro que ganharem e seu lado na barganha por “prover para a família de acordo com suas melhores habilidades” (p. 324). Nenhuma das razões dadas aqui sugere que a atividade é escolhida pois dá à mulher qualquer satisfação separada da que vem do alívio das forças da dominância masculina. Para ter o direito que homens possuem de trabalhar no mundo público, mulheres têm que se cobrir e preencher outros estereótipos e expectativas a respeito do papel subordinado da mulher.
      Outra mulher entrevistada por Hoodfar adotou o véu diretamente para evitar o assédio sexual enquanto trabalhava até tarde após estudar e tinha de pegar ônibus para chegar em casa, “As pessoas me tratavam mal tão frequentemente que eu chegava em casa a noite e chorava”. Ela decidiu pelo véu para que “as pessoas soubessem que eu sou uma boa mulher e que minhas circunstâncias de vida me forçaram a trabalhar até tarde da noite” (1997, p. 325). Procurar uma estratégia de evitar os ataques nas ruas por homens não é um exercício de livre escolha pois é acompanhado de opressão. Os homens normais que a assediariam no Egito podem ser vistos como o equivalente civil dos Hezbollahis que açoitam mulheres no Irã. Abu-Odeh explica os tipos de assédio sexual aos quais mulheres têm sido tradicionalmente expostas em cidades árabes quando não usam véu:
Infalivelmente sujeitas a atenção nas ruas e nos ônibus em virtude de ser mulheres, as encaram, assoviam para elas, se esfregam nelas e as beliscam. Comentários de homens como, “Que belos peitos você tem,” ou “Como você é linda,” são frequentes...Elas estão sempre conscientes de que olham para elas.
(Abu-Odeh, 1995, p. 526)

      Mas Abu-Odeh lembra a feministas que pensam que mulheres devem recusar o véu que isso poderia ser “suicídio social” (1995, p. 529). Mulheres muçulmanas não estavam em posição de se manifestarem contra o véu porque elas seriam vistas como defendendo o ocidente. Ela adiciona a influência de pregadores islâmicos como outra razão para readotar o véu: “Uma mulher que decide usar o véu é usualmente sujeita a uma certa doutrinação ideológica (por um pregador fundamentalista), na qual é dito a ela que toda mulher muçulmana precisa cobrir seu corpo para não seduzir homens, e assim obedecer a palavra de Alá” (p. 532). Isso pode ser visto claramente como doutrinação religiosa mas pode ser razoável questionar se esta é necessariamente mais poderosa em influenciar meninas a se cobrirem com o véu do que revistas e moda e a cultura de beleza no ocidente são em conseguir que meninas se cubram com maquiagem.

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