quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

[CAPÍTULO 1] Against our will - Susan Brownmiller (1975)

Este texto faz parte do livro Against our Will: Men, Women and Rape, de Susan Brownmiller, publicado pela primeira vez em 1975.
Tradução livre: Laryssa Azevedo

A psicologia de massas do estupro: uma introdução

      Krafft-Ebing, pioneiro nos estudos de distúrbios sexuais, teve pouco a dizer sobre estupro. Seu famoso Psychopathia Sexualis dá pouca atenção ao ato e a seus praticantes. Ele acreditava, como informou a seus leitores, que a maioria dos estupradores eram homens degenerados e imbecis. Com essa generalização, Krafft-Ebing lavou as mãos sobre toda a questão e virou-se com prazer aos frotteurs e fetichistas que agradavam.
      Sigmund Freud, cujos maiores trabalhos seguiram os de Krafft-Ebing por vinte a quarenta anos, também se calou sobre o assunto do estupro. Podemos pesquisar seus escritos em vão por uma citação citável, uma análise, uma percepção. O pai da psicanálise, que inventou o conceito da primazia do pênis, nunca foi motivado, até onde sabemos, a explorar a consequência real do pênis como uma arma. O que o mestre ignorou, os discípulos tenderam a ignorar também. Alfred Adler não menciona estupro, apesar de sua total consciência da histórica disputa de poder entre homens e mulheres. Jung refere-se ao estupro apenas de forma obscura, uma referência de relance em alguma de suas interpretações mitológicas. Helene Deutsch e Karen Horney, cada uma de uma perspectiva diferente, atingiram o medo feminino do estupro, e a fantasia feminina, mas como mulheres que não se atreveram a ousar, não direcionaram o olhar a realidade de homem e mulher.
      E os grandes teóricos socialistas Marx e Engels e seus muitos colegas e discípulos que desenvolveram a teoria da opressão de classe e colocaram palavras como “exploração” no vocabulário cotidiano, esses, também, permaneceram estranhamente em silêncio sobre estupro, incapazes de encaixá-lo em seus constructos econômicos. Entre eles apenas August Bebel tentou alcançar sua importância histórica, seu papel na própria formulação da classe, propriedade privada e meios de produção. Em Woman Under Socialism Bebel usou sua imaginação para especular brevemente sobre as brigas pré-históricas por terra, gado e força de trabalho em uma análise marxista aceitável: “Surgiu a necessidade da força de trabalho para cultivar a terra. Quanto mais numerosa essa força, maior a abundância em produtos e gado. Esses esforços levaram primeiro ao estupro de mulheres, em seguida a escravidão de homens conquistados. As mulheres viraram parideiras e objetos de prazer do conquistador; seus homens viraram escravos.” Ele não fez uma boa abordagem, tornando estupro de mulheres algo secundário a procura do homem por trabalho, mas isso foi uma pequena revelação que Engels não atingiu em seu Origin of the Family. Todavia Bebel estava mais tranquilo pesquisando as remunerações e condições de trabalho das mulheres em fábricas alemãs, e foi nisso que dedicou suas energias.
      Foi o desequilibrado gênio Wilhelm Reich, consumido em raiva igualmente por Hitler,  Marx e Freud, que brevemente cogitou a visão de uma “ideologia masculina do estupro.” A frase está no capítulo de abertura de The Sexual Revolution, implorando por mais interpretações. Mas isso não veio. A angustiada mente estava em um estágio muito avançado de desordem. Uma análise política do estupro poderia requerer mais traição a seu próprio imutável gênero do que Wilhelm Reich poderia ter.
      E assim permaneceu para as feministas modernas, livres pelo menos dos escritos que nos proibiam de olhar para a sexualidade masculina, para descobrir a verdade e o significado de nossa própria vitimização. Crítico a nosso estudo é o reconhecimento de que o estupro tem uma história, e por meio das ferramentas da análise histórica podemos aprender o que precisamos saber sobre nossa atual condição.
      Nenhum zoólogo, até onde eu sei, observou que animais estupram em seu habitat natural, a selva. Sexo no mundo animal, incluindo nas espécies com as quais temos relações próximas, os primatas, é mais corretamente chamado “acasalamento,” e sua atividade cíclica é determinada por sinais biológicos que a fêmea emite. O acasalamento é iniciado e “controlado,” parece, pelo ciclo reprodutivo da fêmea. Quando a fêmea da espécie periodicamente entra no cio, emitindo óbvios sinais físicos, ela está pronta e disposta para a cópula e o macho fica interessado. Em outros tempos simplesmente não há interesse, e não há acasalamento.
      Jane Goodall, estudando seus chimpanzés selvagens na reserva de Gombe Stream, notou que os chimpanzés, machos e fêmeas, eram “muito promíscuos, mas isso não significa que cada fêmea vai aceitar cada macho que a cortejar.” Ela gravou suas observações de uma fêmea no cio, que mostrava o inchaço rosado em sua área genital, que todavia demonstrava aversão a um macho em particular que a procurava. “Apesar de ele tê-la balançado para fora da árvore onde ela se refugiava, nós nunca o vimos de fato ‘estuprá-la’,” Goodall escreveu, adicionando, entretanto, “Porém, muito frequentemente ele conseguia se aproximar através de obstinada persistência.” Outro estudioso do comportamento animal, Leonard Williams, afirmou categoricamente “O macaco macho não pode de fato acasalar com a fêmea sem seu convite e disposição para cooperar. Na sociedade dos macacos não existe estupro, prostituição, ou mesmo consentimento passivo.”
      Zoólogos em sua maioria foram reticentes sobre estupro. Isso não tem sido, para eles, uma questão científica importante. Mas nós sabemos que seres humanos são diferentes. Cópula em nossa espécie pode ocorrer 365 dias por ano; não é controlada pelo ciclo de reprodução feminino. Nós fêmeas humanas não “ficamos cor de rosa.” A chamada da reprodução e os sinais, tanto visuais quanto olfativos, são ausentes em nossos procedimentos de acasalamento, perdidos talvez na aleatoriedade evolucionária. Em seu lugar, como marca de nossa civilização, nós temos evoluído um complexo sistema de sinais e desejos psicológicos, e uma complexa estrutura de prazer. Nosso chamado para o sexo ocorre na cabeça, e o ato não está necessariamente ligado, como em outros animais, ao padrão de procriação da mãe natureza. Sem uma temporada de acasalamento biologicamente determinada, um macho humano pode demonstrar interesse sexual em uma fêmea humana quantas vezes quiser, e seus desejos psicológicos não dependem de forma alguma de sua prontidão biológica ou receptividade. Consequentemente, o macho humano pode estuprar.
      A capacidade estrutural do homem de estuprar e a correspondente vulnerabilidade estrutural da mulher é a base da fisiologia de ambos os sexos como o original ato sexual em si. Não fosse esse acidente biológico, uma acomodação que requer o encaixe de duas partes separadas, pênis em vagina, não haveria cópula e nem estupro como conhecemos. Anatomicamente alguém pode querer melhorar o design da natureza, mas tal especulação não me parece realista. O sexo humano alcança seu propósito histórico de geração da espécie e também dispõe alguma intimidade e prazer. Não tenho nenhum conflito com o procedimento. Mas nós não podemos argumentar com o fato de que em termos de anatomia humana a possibilidade de intercurso forçado incontestavelmente existe. Esse único fator pode ser sido suficiente para ter causado a criação da ideologia masculina do estupro. Quando homens descobriram que poderiam estuprar, eles o fizeram. Muito depois, sob certas circunstâncias, eles até vieram a considerar estupro um crime.
      No cenário violento habitado por mulheres e homens primitivos, alguma mulher em algum lugar previu seu direito a própria integridade física, e consigo imaginar sua luta para preservá-lo. Após o chocante reconhecimento de que essa particular encarnação de hominídeo cabeludo de duas pernas não era o Homo sapiens com o qual ela gostaria de livremente unir as partes, deve ter sido ela, e não algum homem, que pegou a primeira pedra e arremessou. Como ele deve ter ficado surpreso, que inesperada batalha deve ter se iniciado. Rápida e determinada, ela deve ter chutado, mordido, empurrado e corrido, mas ela não podia retaliar.
      A obscura percepção que entrou na consciência de mulheres pré-históricas deve ter tido uma igual porém oposta reação na mente do agressor masculino. Se o primeiro estupro foi uma inesperada batalha encontrada na recusa da primeira mulher, o segundo estupro foi indubitavelmente premeditado. De fato, uma das formas mais antigas de ligação masculina deve ter sido o estupro coletivo de uma mulher por um bando de homens. Feito isso, o estupro se tornou não apenas uma prerrogativa masculina, mas uma arma masculina básica de força contra a mulher, o principal agente do desejo dele e do medo dela. A entrada forçada dele no corpo dela, apesar dos protestos físicos e dos esforços, se tornou o veículo de sua conquista vitoriosa sobre ela, o grande teste de sua força superior, o triunfo de sua masculinidade.
      A descoberta do homem de que sua genitália poderia servir como uma arma para gerar medo deve estar entre uma das mais importantes descobertas dos tempos pré-históricos, juntamente com o uso do fogo e do primeiro machado rudimentar de pedra. Dos tempos pré-históricos até o presente, eu acredito, o estupro exerceu uma função crítica. Não é nada mais nada menos que um processo consciente de intimidação pelo qual todo homem mantém toda mulher em um estado de medo.