segunda-feira, 28 de novembro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 4] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

IMPERIALISMO CULTURAL OCIDENTAL – EXPORTANDO PRÁTICAS DANOSAS PARA O NÃO OCIDENTE

      Mulheres no Afeganistão supostamente recentemente libertas da regra do Talibã, estão presas na dualidade patriarcal de virgem/vadia por terem sido apresentadas a apenas duas escolhas de aparência, cobrir-se com a burca ou usar maquiagem. Práticas de beleza ocidentais são vistas como tão obviamente naturais, inevitáveis e boas para mulheres que têm sido mantidas como o melhor para mulheres do Afeganistão. Após anos de terrível opressão nos quais elas eram permitidas fora de casa apenas se usassem a burca que cobre o corpo inteiro, viajavam apenas na companhia de homens, eram privadas de educação e emprego e poderiam apanhar nas ruas por guardiões homens da integridade islâmica sem direito a reparação, poder envolver-se em práticas de beleza ocidentais, especialmente para rosto e cabelo, não parece uma necessidade urgente. Contudo é dessa forma que tais práticas estão sendo promovidas.
     A indústria de beleza americana avançou em 2002 em consequência da guerra para se infiltrar no Afeganistão sob o disfarce de um “auxílio” de beleza urgentemente necessitado. Isso foi representado na mídia ocidental como uma ajuda positiva ao invés de imperialismo cultural americano e empreendimento capitalista. Foi oferecido a mulheres o papel de cobrir-se com maquiagem e ser sexualmente objetificada, ao invés de cobrir-se com a burca para prevenir que fossem vistas como objetos sexuais por homens. A perspectiva do New York Times sobre isso é que apesar de duas décadas de guerra “Mulheres afegãs mantiveram seu desejo de parecer lindas, mas existe uma “lamentável escassez de esteticistas. Além disso, elas não têm ninguém para ensiná-las e nenhum lugar onde podem ter acesso a um pente decente, ainda mais à coleção de géis, cremes, pós, delineadores e cores que transbordam das prateleiras de qualquer drogaria americana” (Halbfinger, 2002,  p. 1). Em resposta a essa oportunidade de mercado, e à oportunidade de mostrar suas companhias lidando com um socorro emergencial, a maioral da indústria de beleza americana logo “correu ao resgate” liderada pela editora da Vogue. O resultado dessa generosidade foi que uma escola que ensinaria práticas de beleza estava para abrir em acordo com o Ministério Afegão de Assuntos Femininos, como se práticas de beleza fossem de fato uma questão crucial de direitos humanos para mulheres, junto com educação, segurança e trabalho.
     Os fabricantes de produtos de beleza americanos ofereceram manuais e mercadorias para auxiliar a empreitada. A editora da Vogue, Anna Wintour, disse que a indústria da beleza é “incrivelmente filantrópica” e que a escola de beleza “não apenas ajudaria mulheres do Afeganistão a ser e sentirem-se melhor mas também as empregaria”. Aparentemente a situação nos 20 salões de beleza que reabriram após a remoção do controle do Talibã constituem uma crise de saúde porque as condições eram insalubres e perigosas. Como uma emigrante afegã que viu a situação reportou:
      Elas estão usando tesouras enferrujadas, têm um pente barato para o salão inteiro e não o limpam, não há água corrente ou creme de barbear, e existe um problema real com piolhos. Elas usam varas de madeira e elásticos para fazer permanentes. E não há algodão,  de modo que a solução de permanente escorre pelo rosto da cliente.

(Halbfinger, 2002, p. 1)
      Permanente capilar poderia ser considerada uma prática cultural danosa por si só dado que a química envolvida é tóxica independente de escorrer pelo rosto (Erickson, 2002), mas nos interesses do capitalismo transformou-se em uma demanda de direitos humanos. Simplesmente traduzir manuais educacionais de beleza não era suficiente no Afeganistão porque muitas mulheres eram analfabetas, então um curso em vídeo de instruções de maquiagem estava sendo preparado.
      Apesar de as corporações de cosméticos lutarem entre si para fazer doações à escola de beleza em um almoço da Vogue foi dito que não estavam competindo por vendas, um executivo disse que “a escola de beleza não pode ser julgada um sucesso se não criar uma demanda por cosméticos americanos assim que possível” (Halbfinger, 2002, p. 1). Não foi apenas no Afeganistão que corporações de cosméticos dos Estados Unidos viram uma oportunidade de mercado. Eles rapidamente entraram na União Soviética após a queda do regime comunista para oferecer seus serviços para mulheres antes em privação, e estão alcançando a China também. Como a historiadora dos negócios Kathy Peiss coloca, até mesmo nas “Florestas tropicais da Amazônia, mulheres vendem Avon, Mary Kay e outros produtos de beleza” (Peiss, 2001, p. 20). Mas Peiss, como muitos dos envolvidos em vender ideais de beleza ocidentais no Afeganistão, esconde a opressão dessa atividade colonizadora ao enfatizar que ela fornece empregos para mulheres que precisam muito deles. Como ela diz, “como foi o caso há cem anos nos Estados Unidos, esses ‘micronegócios’ deram a algumas mulheres um apoio na economia de mercado em desenvolvimento” (Peiss, 2001, p. 20).

COBRINDO MULHERES NA RELIGIÃO PATRIARCAL

      Apesar de a objetificação sexual requerida das mulheres no ocidente poder ser distinta do ato de se cobrir exigido por regimes islâmicos, é instrutivo considerar a base cultural idêntica a partir da qual tanto a cultura ocidental quanto a islâmica se desenvolveram. Cobrir as cabeças de mulheres é uma prática cultural de tribos do oriente médio que encontraram caminhos, via religiões monoteístas originárias daquela região, para outras partes do mundo. Cobrir as cabeças e os corpos era imposto sobre algumas mulheres cristãs no ocidente até pouco tempo atrás. Em minha infância em Malta nos anos 1950, onde meu pai foi colocado pelo exército, eu lembro dos avisos em ônibus que instruíam mulheres a “usar vestido Marylike”. Ainda era obrigatório que mulheres que entrassem em igrejas em muitas partes da Europa cobrindo suas cabeças. A religião cristã, como o islã, e a outra religião patriarcal monoteísta, o judaísmo, tem suas raízes em culturas patriarcais antigas que existiam no oriente médio. Nessas culturas antigas, era exigido que mulheres respeitáveis se cobrissem como no código babilônico de Hamurabi. Gerda Lerner explica em The Creation of Patriarchy, que o código, que precede as três religiões, exigia que mulheres que não eram prostitutas se cobrissem para indicar que eram propriedade de homens individuais (Lerner, 1987). As mulheres prostituídas, geralmente escravas, não se cobriam para indicar que eram propriedade de homens em geral.
      No início da cristandade um código similar foi imposto. Dessa forma, na carta de Paulo aos Coríntios no Novo Testamento ele define a regra. Ele explica que “a cabeça de todo homem é Cristo; e a cabeça da mulher é o homem; e a cabeça de Cristo é Deus”. Isso pode ser demonstrado através de cobrir a cabeça desta forma:
      Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua própria cabeça. Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu. O varão pois não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do varão. Porque o varão não provém da mulher, mas a mulher do varão. Porque também o varão não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do varão. 

(Coríntios, 1957, 11: 3-15, p. 181)
      A cobertura da cabeça da mulher poderia mostrar que ela era propriedade do homem. Outras práticas danosas da cristandade antiga acompanharam o código de vestimenta. Mulheres não podiam falar na igreja, mas podiam perguntar a seus maridos sobre qualquer coisa que não entendessem quando chegassem em casa e eram obrigadas a “submeter-se a seus próprios maridos, como a Deus” (Efésios, 1957, 5: 22, p. 200).
      Um ramo da religião cristã hoje vai além de simplesmente cobrir mulheres. Mulheres estão de fato excluídas de todo o Monte Athos na Grécia, coberto por monastérios ortodoxos, para que os monges estejam protegidos de ter que vê-las. Em 2002 essa prática cristã antiga recebeu apoio influente pela visita, divulgada na mídia, do Príncipe Charles a um monastério na montanha (Smith, 2004). A montanha tem excluído mulheres desde o século XI e com o status de uma república teocrática independente pode impor penalidades legais a quem desafiar o banimento. Charles visitou o lugar diversas vezes desde  morte de sua ex esposa, Diana, e é dito que ganha ótimo consolo de seu refúgio, um lugar onde as leituras no refeitório “são frequentemente baseadas no (...) mal causado pelas mulheres com a queda de Eva” (Smith, 2004, p. 3). A contínua existência dessa zona de exclusão apesar de tentativas da União Europeia de revogar o banimento é um lembrete dos valores misóginos que estão na base do cristianismo patriarcal.

O QUE CONSTITUI UMA PRÁTICA CULTURAL DANOSA?

      Eu sugeri neste capítulo que tanto as culturas ocidentais influenciadas pelo cristianismo quanto as influenciadas pelo islã reforçam práticas culturais danosas sobre mulheres. Apenas uma determinação para ignorar as origens políticas, funções e consequências das práticas de beleza ocidentais permitiriam a crença de que a cultura ocidental é claramente superior nas liberdades dadas a mulheres em relação à aparência. Considerando que todas as três culturas religiosas patriarcais originadas no antigo oriente médio começaram forçando mulheres a se cobrir, isso mudou no ocidente para a aparentemente muito diferente prescrição para mulheres exercerem seu papel sexual em espaços públicos. Em algumas áreas do oriente médio e da Ásia onde cobrir-se foi uma regra desafiada ou está morrendo existe uma reforço renovado da regra. O resultado final é uma aparentemente divergência cada vez maior entre as regras de aparência para mulheres no oriente e no ocidente. Ambos os conjuntos de regras de aparência, entretanto, requerem que mulheres devam ser “diferentes/deferentes”, e ambos exigem que elas sirvam as necessidades sexuais dos homens, seja fornecendo excitação sexual ou escondendo os corpos femininos para que homens não fiquem excitados. Em ambos os casos, é exigido que mulheres satisfaçam as necessidades masculinas em espaços públicos e não tenham as liberdades que homens possuem.
      O conceito de práticas culturais danosas em relação à aparência, portanto, não é restrito a culturas não ocidentais. Todas as práticas culturais ocidentais consideradas neste livro, de maquiagem a labioplastia, se encaixam no critério para identificação de práticas culturais danosas. Eu argumento que elas criam papéis estereotipados para os sexos, são originadas da subordinação da mulher e são para benefício dos homens e justificadas por tradição. É certamente possível argumentar, como demonstro no capítulo 6 sobre maquiagem, que mesmo práticas que aparentam ter menos efeito na saúde de mulheres e meninas, como o uso de batom, podem ser prejudiciais. Apesar de práticas de beleza ocidentais serem raramente forçadas por violência física, elas são todas culturalmente reforçadas. Falhar em usar maquiagem e em depilar as pernas e axilas pode não ser “suicídio social” em culturas ocidentais mas irá, como sugiro no capítulo sobre maquiagem, afetar a habilidade de mulheres em conseguir e manter emprego e nível de influência social. Era exigido que as mulheres do parlamento britânico que mencionei usassem roupas femininas e que mostrassem as pernas se quisessem ter qualquer legitimidade na legislatura e era improvável que sobrevivessem se permitissem que os pelos das axilas aparecessem nas blusas ou que pelos das pernas aparecessem em suas coxas.
      Entretanto estou consciente de que o grau de dano inflingido por práticas como cirurgia cosmética e uso de batom  não é igual. A implicação de reconhecer práticas de beleza ocidentais como práticas culturais danosas é que os governos irão, como requerido pela Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulheres, precisar alterar as atitudes sociais que os baseiam. Em caso de algumas práticas de cirurgia cosmética as consequências são suficientemente severas e a regulação tão facilmente efetuada por penalidades legais sobre praticantes médicos que poderiam ser terminadas através de meios legais. O uso de batom e a depilação, entretanto, não devem ser consideradas práticas isentas de ser consideradas danosas e requerem medidas, apesar de medidas legais não serem apropriadas. Elas marcam mulheres como subordinadas e claramente demonstram os papéis estereotipados dos sexos mesmo não sendo tão severas em seu impacto na saúde das mulheres. O papel dos governos comprometidos com o fim de tais práticas, ou mesmo o simples alívio do impacto da exigência culturais que devem cumprir, deve portanto ser de combater a criação de diferença sexual, em ideias e atitudes, práticas de negócios, que inscrevem essa noção na fundação da cultura ocidental.
      Em capítulos posteriores eu examino as práticas de maquiagem, salto alto e cirurgia cosmética em mais detalhes para mostrar como são reforçadas e quais são suas consequências para a saúde das mulheres e acesso a prerrogativas comuns que homens em sociedades ocidentais provavelmente nem valorizam: aparecer no espaço público com a cara lavada, correr, ter tempo de lazer livre da necessidade de manutenção do corpo. Leitores poderão tirar suas conclusões sobre incluir essas práticas na compreensão da ONU. No próximo capítulo eu amplio as definições de práticas de beleza femininas na cultura ocidental através da travestilidade/transsexualismo. A performance de práticas de beleza por homens mostra que esse comportamento não é biologicamente conectado a mulheres. Mas faz mais do que isso. Como eu procuro demonstrar aqui, praticantes masculinos obtém prazer sexual de tais práticas porque elas demonstram status subordinados. Isso apoia a compreensão de práticas de beleza como comportamentos de deferência de um grupo subordinado.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 3] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

MAQUIAGEM E VÉU: MESMA COISA?

      Ao invés de serem dois lados da mesma moeda de opressão a mulheres, o véu e a maquiagem são mais usualmente vistos como opostos. A maquiagem pode até mesmo ser vista como a alternativa liberal ao uso do véu. Existe aparentemente uma diferença, que é, espera-se que mulheres respeitadas na cultura islâmica cubram suas cabeças e corpos para que homens não se sintam sexualmente tentados, enquanto no ocidente espera-se que mulheres se vistam e usem maquiagem para que os homens se sintam sexualmente tentados e para criar um banquete para os olhos deles. Isso pode parecer uma conexão. Tais expectativas refletem o dualismo tradicional que diz respeito à função das mulheres sob dominação masculina. Mulheres, tradicionalmente, mesmo no ocidente, devem se encaixar nas categorias virgem/vadia. Virgens estão fora dos limites até que se casem e sejam possuídas sexualmente por homens individualmente, enquanto vadias existem para servir homens em geral.
      Infelizmente até mesmo estudiosas do feminismo são algumas vezes incapazes de pensar a respeito de si mesmas fora desse dualismo para imaginar uma forma de vida autônoma para mulheres que não caia nessas categorias. Lama Abu-Odeh, por exemplo, em escritos sobre a readoção do véu em alguns países muçulmanos, diz que suas conclusões como feminista árabe são que “Mulheres árabes podem ser capazes de se expressar sexualmente, para que possam amar, brincar, provocar, flertar e excitar... Nelas, vejo atos de subversão e libertação” (Abu-Odeh, 1995, p. 527). Mas o que ela considera prazeroso, as mulheres que adotaram o véu viram como “mau”. Ao escolher para mulheres o papel de excitar homens ao invés de se cobrir, Abu-Odeh se prende na dualidade que é oferecida para mulheres sob dominância masculina, objeto sexual ou coberto, prostituta ou freira. Existe uma terceira possibilidade: mulheres podem inventar para si mesmas algo novo e fora dos estereótipos da cultura patriarcal ocidental e não ocidental. Mulheres podem ter acesso aos privilégios possuídos por homens de não ter que se preocupar com aparência e poder sair em público sem nada no rosto ou na cabeça.
      Tanto o véu quanto a maquiagem são frequentemente vistos como comportamentos voluntários das mulheres, adotados por escolha, que expressam agência. Mas em ambos os casos existe considerável evidência das pressões surgidas da dominância masculina que causam esses comportamentos. Por exemplo, a historiadora do comércio Kathy Peiss coloca que a indústria de produtos de beleza decolou nos EUA nos anos 1920/1930 pois nessa época as mulheres estavam entrando no mundo público de escritórios e outros ambientes de trabalho (Peiss, 1998). Ela enxerga que mulheres tiveram que se inventar como um sinal de sua nova liberdade. Mas existe outra explicação. Comentadoras feministas da readoção do véu por mulheres em países muçulmanos no final do século XX sugeriram que mulheres se sentem mais seguras e livres para ocupar e se movimentar no mundo público quando cobertas (Abu-Odeh, 1995). Pode ser isso que usar maquiagem signifique, que mulheres não tem o direito automático de se arriscar na vida pública da mesma forma que homens. Maquiagem, assim como o véu, assegura que elas estão mascaradas e não cometendo a afronta de se mostrarem como as cidadãs reais e iguais que deveriam ser em teoria. Maquiagem e véu podem revelar a falta de direitos das mulheres.
      Em alguns casos a adoção do véu é claramente o resultado de força e ameaça de violência. No Irã, cobrir-se é compulsório e forçado pelo Estado. Como Haleh Afshar explica “A desobediência aberta ao hijab e a aparição pública sem ele é punível com 74 chibatadas” (Afshar, 1997, p. 319). Não há sugestão de que mulheres podem “escolher” usar o véu, já que a imposição é tão clara e brutal, “Esses homens (membros do partido de Deus, os Hezbollahis) atacam mulheres que consideram estar inadequadamente cobertas com facas ou armas e elas têm sorte se sobreviverem a tal experiência.” (Afshar, 1997, p. 320). Maquiagem não é imposta com tamanha brutalidade em culturas ocidentais.
      Entretanto, como Homa Hoodfar aponta, o véu pode ser usado por diferentes razões em diferentes países e até em um mesmo país (Hoodfar, 1997). Em algumas situações nenhuma força óbvia é aplicada. Lama Abu-Odeh descreve a readoção do véu. Ela diz que nos anos 1970 mulheres “andavam pelas ruas de cidades árabes usando trajes ocidentais: saias e vestidos abaixo dos joelhos, saltos altos e luvas que cobriam o braço no verão. Seus cabelos geralmente eram expostos e elas usavam maquiagem” (1995, p. 524). Nos anos 1980 e 1990 muitas, mesmo algumas das mesmas mulheres, adotaram o véu, definido aqui como uma cobertura ou lenço na cabeça. Abu-Odeh nos diz que “seus corpos pareciam ser um campo de batalha” entre os valores do ocidente, a “construção capitalista na qual corpos femininos eram ‘sexualizados, objetificados, coisificados’ e a tradicional na qual os corpos femininos eram ‘transformados em bens, em propriedades’ e aterrorizados como garantias da honra (sexual) da família” (p. 524). As mulheres que adotaram o véu eram aquelas que precisavam usar o transporte público para trabalhar ou estudar. Elas estavam menos sujeitas a ser assediadas sexualmente por homens. Em ocasiões em que eram assediadas elas se sentiriam mais confortáveis a contestar se estivessem com o véu, pois não poderiam ser culpadas por ter incitado esse comportamento masculino abusivo. Era mais fácil para as mulheres e meninas que usavam véu se sentirem ofendidas e para os outros se sentirem ofendidos em apoio a elas se fossem vistas como inocentes vítimas que não mereciam tal tratamento. A adoção do véu pode, dessa forma, ser vista como uma forma de aliviar os danos sofridos por mulheres como resultado da dominância masculina. A escolha, todavia, surge da opressão ao invés de indicar agência.
      Hoodfar explica a readoção do véu no Egito onde não existe ameaça de punição brutal. Mulheres que, como Hoodfar coloca, “readotam o véu” tendem a ser de classe média baixa, educadas em universidades e trabalhadoras de colarinho branco no setor público e governamental. As razões dadas por Hoodfar para “readotar o véu” não sugerem que as mulheres tiveram alternativas razoáveis para tomar essa decisão. Uma mulher entrevistada por Hoodfar expressou resistência a ideia de usar o véu antes de se casar, mas na véspera de seu casamento encontrou considerável pressão por parte da família de seu futuro marido contra sair para trabalhar como professora, o que ela foi treinada para e esperava fazer. Seus futuros parentes argumentaram que se ela saísse para trabalhar “as pessoas iriam falar, e sua reputação poderia ser questionada” (Hoodfar, 1997, p. 323). Além disso ela sofreu assédio sexual, “Em ônibus lotados, homens que perderam seu respeito tradicional por mulheres podem molestá-la e claro que isso irá prejudicar seu orgulho e dignidade, bem como de seu marido e irmãos” (p. 323). Para resolver essas pressões ela decidiu se tornar muhaggaba (mulher que usa véu). Isso agradou a família do marido.
      As razões que Hoodfar oferece relacionam-se claramente com as tentativas das mulheres de se acomodar à dominância masculina. O véu, ela diz, demonstra a lealdade da mulher às regras da dominância masculina, “comunica alto e claro à sociedade em geral e a maridos em particular que a que veste está ligada à ideia islâmica de seu papel sexual” (Hoodfar, 1997, p. 323). Mulheres de véu podem trabalhar porque estão demonstrando que ainda respeitam “comportamentos e valores tradicionais”. Mulheres que usam o véu “diminuem a insegurança de seus maridos” e mostram a eles que “como esposas, não estão competindo, mas sim em harmonia e cooperação com eles” (p. 324). Em troca de todos esses sinais de obediência o véu “coloca mulheres numa posição de esperar e exigir que seus maridos honrem e reconheçam seus direitos islâmicos”. Dessa forma os maridos podem deixar que suas mulheres mantenham o dinheiro que ganharem e seu lado na barganha por “prover para a família de acordo com suas melhores habilidades” (p. 324). Nenhuma das razões dadas aqui sugere que a atividade é escolhida pois dá à mulher qualquer satisfação separada da que vem do alívio das forças da dominância masculina. Para ter o direito que homens possuem de trabalhar no mundo público, mulheres têm que se cobrir e preencher outros estereótipos e expectativas a respeito do papel subordinado da mulher.
      Outra mulher entrevistada por Hoodfar adotou o véu diretamente para evitar o assédio sexual enquanto trabalhava até tarde após estudar e tinha de pegar ônibus para chegar em casa, “As pessoas me tratavam mal tão frequentemente que eu chegava em casa a noite e chorava”. Ela decidiu pelo véu para que “as pessoas soubessem que eu sou uma boa mulher e que minhas circunstâncias de vida me forçaram a trabalhar até tarde da noite” (1997, p. 325). Procurar uma estratégia de evitar os ataques nas ruas por homens não é um exercício de livre escolha pois é acompanhado de opressão. Os homens normais que a assediariam no Egito podem ser vistos como o equivalente civil dos Hezbollahis que açoitam mulheres no Irã. Abu-Odeh explica os tipos de assédio sexual aos quais mulheres têm sido tradicionalmente expostas em cidades árabes quando não usam véu:
Infalivelmente sujeitas a atenção nas ruas e nos ônibus em virtude de ser mulheres, as encaram, assoviam para elas, se esfregam nelas e as beliscam. Comentários de homens como, “Que belos peitos você tem,” ou “Como você é linda,” são frequentes...Elas estão sempre conscientes de que olham para elas.
(Abu-Odeh, 1995, p. 526)

      Mas Abu-Odeh lembra a feministas que pensam que mulheres devem recusar o véu que isso poderia ser “suicídio social” (1995, p. 529). Mulheres muçulmanas não estavam em posição de se manifestarem contra o véu porque elas seriam vistas como defendendo o ocidente. Ela adiciona a influência de pregadores islâmicos como outra razão para readotar o véu: “Uma mulher que decide usar o véu é usualmente sujeita a uma certa doutrinação ideológica (por um pregador fundamentalista), na qual é dito a ela que toda mulher muçulmana precisa cobrir seu corpo para não seduzir homens, e assim obedecer a palavra de Alá” (p. 532). Isso pode ser visto claramente como doutrinação religiosa mas pode ser razoável questionar se esta é necessariamente mais poderosa em influenciar meninas a se cobrirem com o véu do que revistas e moda e a cultura de beleza no ocidente são em conseguir que meninas se cubram com maquiagem.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Feminismo devia vir com um sinal de aviso.

Título original: Feminism Should Come With a Warning Label
Por: Sara Schaefer 
Disponível em: https://goo.gl/nH2ffR
Tradução livre por: Laryssa Azevedo

Eu recentemente vi um post no Facebook que encorajava as meninas a falar alto. Dizendo para não rir das piadas dos garotos se não fossem engraçadas. Para se impor. Para não se desculpar. Para não sorrir se pedirem. Para ocupar o espaço. Para ser uma “mulher durona”.

Esses tipos de mensagens inspiracionais girl-power tem dominado minha timeline por meses, agora obviamente porque estamos vivendo um pesadelo no qual o sexismo personificado está concorrendo à presidência contra a primeira candidata mulher. Parece uma piada perfeitamente construída. A ironia parece um pouco nítida demais às vezes, como se esse fosse um roteiro de uma série da Shondaland. E não termina nunca; estou remando num mar de manchetes ruins, onda após onda de palavras e ideias que prejudicam atingindo meu rosto. Isso está, de fato, nos deixando doentes.

Então eu entendo a necessidade de uma convocação feminista, por discursos motivadores e poesia e quotes do Pinterest. Uma série de chavões jogados como coletes salva-vidas após um naufrágio. Peguem-nos. Segurem neles, tentem não afundar.

Mas muitas vezes há um vazio nessas mensagens. Eu sinto um pouco de aflição toda vez que as leio. Pois essas mensagens nunca vêm com um sinal de aviso. 

Eu tenho sido uma estranha menina franca durante toda minha vida. Eu não queria ser, sério. Tudo o que eu queria enquanto crescia era ser popular e adorada pelos garotos e bonita e doce. Ao invés disso, cada centímetro do meu ser me forçava em outra direção. Eu não estava fazendo conscientemente uma afirmação feminista “brava” por nunca conseguir entender o que fazer com o cabelo. Eu segui algumas das normas de gênero facilmente, mas na maioria das vezes, era uma batalha perdida. Eu nem mesmo me encaixava nos moldes Tomboy, o que era legal e desejável e ao menos fazia sentido. Eu estava apelas flutuando por aí em algum lugar no meio. Era solitário. Eu era a menina que se fantasiava de espinha no Halloween da oitava série. Essa não era uma escolha que uma garota popular faria. Essa era a escolha de uma garota que pensou que seria engraçado, mesmo que ninguém mais tivesse entendido a piada (e acredite em mim, ninguém entendeu). Minha mãe frequentemente me dizia que eu estava “a frente do meu tempo”. Era um jeito legal de dizer “você é estranha pra caramba”. Minha memória geral de meninos durante essa época era dos olhares confusos em seus rostos sempre que eu falava ou me movia. Eu não era a garota legal e não era uma garota das garotas também. Era apenas eu e nenhuma influência me faria mudar.

Esse sentimento de nunca pertencer a lugar algum me seguiu até a fase adulta e em minha carreira profissional. E agora que eu li cada escrito feminista do planeta sobre microagressões, clube dos meninos, e sexismo internalizado, institucional, sistemático e assustador, muito disso me deixou com o estranho sentimento confuso de “oooh agora tudo faz sentido” e “meu deus do céu”. Eu consigo enxergar o tabuleiro agora, mas também consigo enxergar que é impossível vencer.

Então, quando eu vejo essas instruções muito simplistas em ponto de cruz de “SEJA UMA MULHER DURONA!”... meu coração dá um pequeno suspiro. Porque o lema nunca é seguido de “Mas esteja pronta para o que isso traz”.

Mesmo que o feminismo seja a modinha do momento agora, e que você não esteja arriscando muito socialmente ao se identificar como tal, você deveria saber: se realmente vai fazer isso, e viver isso, você deveria ler os sinais de aviso primeiro.

FALE ALTO!

Aviso: fale alto, mas tipo, pode ser alto de um jeito fofo e sexy? Isso vai tornar mais fácil. Certifique-se que seu grito esteja coberto de açúcar. Os garotos com certeza adoram açúcar! Mas mesmo assim, eles podem cuspir. Na verdade, não importa qual seja sua mensagem, a maioria das pessoas irá preferir que você abaixe um pouco o tom.

NÃO DEIXE QUE HOMENS INTERROMPAM VOCÊ!

Aviso: quando você se impõe, eles não gostam nem um pouquinho. Recentemente eu estava em uma reunião e o tópico feminismo surgiu. Durante a conversa, eu era repetidamente interrompida por vários homens. Quando fiz piada apontando que o que eles estavam fazendo era um exemplo do problema, me disseram “bom, talvez você esteja sendo muito interrompida porque nunca para de falar”. Eu quis gritar.
(Além disso, posso falar que dizer para mulheres “não deixe homens interromperem você” é absurdo. “Use a telepatia para entrar no cérebro do homem e mudar seu comportamento! Você consegue garota!”)

OCUPE ESPAÇO!

Aviso: existe um pequeno espaço para você. Quando você ocupa mais espaço do que o atribuído, você sentirá o aperto. É física simples. Não apenas você vai sentir como vai deixar hematomas. Durante os últimos anos, eu tenho feito apresentações para programas de TV. Você se surpreenderia com a frequência com a qual a frase “nós realmente queremos projetos liderados por mulheres” é seguida rapidamente de “mas, isso é provavelmente feminino demais”. Você começa a subconscientemente começar suas apresentações reconhecendo que você é uma mulher, e que isso com certeza é um problema, mas podemos superar totalmente! Todo mundo está falando muito sobre quebrar barreiras para mulheres atualmente, mas em muitos lugares, os muros estão firmes em seus lugares. Você frequentemente sentirá a necessidade de se desculpar apenas por estar lá.

NÃO RIA DAS PIADAS IDIOTAS QUE HOMENS FAZEM!

Aviso: rir das piadas idiotas dos homens pode abrir muitas portas para você. Quando você é a estraga prazeres, você é deixada de lado e ignorada. Ninguém quer uma chata por perto. Eu passo por isso muitas vezes: sempre que um comediante homem se mete em algum tipo de problema com o público, as pessoas esperam que comediantes feministas assumam um lado, defendendo o homem até seu último suspiro ou entrando para o clube dos justiceiros, sendo banida para sempre da mesa dos descolados. Quando você decide ser uma feminista neste mundo, esteja pronta para constantemente ter que fazer escolhas em espaços que não permitem sutilezas.

APOIE OUTRAS MULHERES!
Aviso: muitas das outras mulheres já vão te odiar por todas as coisas listadas acima. Seu comportamento será um inconveniente para que elas continuem operando confortavelmente no clube dos meninos. Seu esforço para ocupar mais espaço soará como uma invasão no espaço delas. Algumas delas não vão valorizar o seu apoio porque você tem uma doença que elas não querem pegar. Ah, e você vai precisar decidir se realmente quer encarar – porque quando você escolhe verdadeiramente apoiar outras mulheres, meio que perde o direito de ser escrota com elas por trás dos panos.

SEJA UMA CHEFE DURONA!

Aviso: quando você inicia sua nova vida como uma Chefe Durona, você irá constantemente se perguntar “O que isso significa? Eu ainda posso tirar sonecas?” Você nunca saberá se está sendo “feminista o suficiente”. E a lista crescente de compromissos que pedirão para você assumir só para passar por um dia irá te devorar. Você conseguirá progredir um pouquinho se está tão atolada em seus próprios princípios que ninguém te vê ou escuta? Você pode ser bem sucedida sem ao menos jogar o jogo deles um pouquinho? Você consegue lutar pelo próprio empoderamento enquanto dá espaço para outros menos privilegiados que você? Estou liberada para cometer erros?

Eu não estou tentando fazer você se sentir mal por imprimir sua citação feminista favorita e colar em seu cubículo. Se esses lemas tem mantém a salvo, faça isso. Só estou dizendo, você colocou o colete salva-vidas, e agora? Você ainda tem que nadar até a costa.



Eu acho que a coisa que mais machuca sobre essa eleição é só o quão duras as pessoas estão tornando as coisas para Hillary Clinton. Que esse país odeia tanto as mulheres que isso poderia até virar um concurso. Que tão poucas pessoas estão dispostas a ao menos examinar seus preconceitos contra ela. Que ela tem que lidar com algumas das táticas mais vis que já vimos na política americana. Mas droga, ela conseguiu. Ela chegou até aqui, não porque leu algum lema feminista. Ela chegou até aqui porque ela leu os sinais de aviso e decidiu fazê-lo de qualquer forma.

Estou com ela. Foda-se se você tem um problema com isso.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 2] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

A CULTURA OCIDENTAL OFERECE “ESCOLHA”?
     Práticas culturais danosas são vistas como existentes em culturas nas quais mulheres não têm escolha. A ideia de que práticas tradicionais danosas “escolhidas” podem ser distintas das forçadas não se encaixa bem na compreensão das Nações Unidas do que constitui tais práticas. A noção de práticas culturais danosas é baseada na ideia de que a cultura pode coagir e que mulheres e meninas não são agentes livres capazes de escolher. Nos anos 90, no ocidente, entretanto, a ideologia do liberalismo ocidental e os sistemas econômicos de livre mercado do capitalismo individual defendidos por ele, foram forças potentes na transformação de críticas políticas que reconhecem desigualdade e opressão como limites à escolha e à oportunidade (ver Jeffreys, 1997b). Essa ideologia é tão abrangente que afetou a discussão de Radhika Coomaraswamy sobre práticas danosas fora do ocidente em seu relatório de 2002. O relatório inclui códigos de vestimenta que impõem roupas que cobrem o corpo de mulheres como a burca como práticas culturais danosas. Elas são danosas porque “restringem o movimento das mulheres e seu direito de expressão” e porque são prejudiciais à saúde, “Tais vestimentas podem causar asma, aumento da pressão sanguínea, problemas na audição ou visão, assaduras na pele, queda de cabelo e um declínio geral na condição mental” (Coomaraswamy, 2002, p. 28). Recentemente outra preocupação com a saúde surgiu. Médicos escreveram em Lancet sobre o aumento da incidência de raquitismo, condição na qual os ossos ficam fragilizados devido a falta de vitamina D, explicando que, no oriente médio, existem “muitas mães com a forma adulta de raquitismo e crianças com raquitismo também” como resultado de mulheres sendo obrigadas a cobrir seus corpos, ficando sem receber luz natural do sol em sua pele. (Lichtarowicz, 2003).
     No entanto, Coomaraswamy comenta, tais códigos de vestimenta só são um problema quando são “impostos sobre as mulheres e se a punição é autorizada para quem não usa a incômoda vestimenta” porque nesse caso “os direitos de escolha e expressão são claramente negados” (2002, p. 29). A noção de escolha que ela emprega não engloba os tipos de pressão para vestir roupas restritivas que é discutido mais tarde neste capítulo, como assédio em locais públicos que só pode ser aliviado dessa forma. Cobrir-se pode reduzir este tipo de atrito mas não é consequentemente um sinal de liberdade como é uma acomodação à opressão. A introdução de Coomaraswamy à noção de “escolha” é preocupante pois dilui um dos aspectos mais úteis da noção de práticas culturais danosas, a irrelevância de tais noções ocidentais onde expectativas e práticas culturais agem como executores.
     Mesmo a bem respeitada filósofa política feminista estadunidense, Martha Nussbaum, usa o argumento da “escolha” para distinguir práticas de beleza ocidentais, as dietas em particular, das de fora do ocidente. Nussbaum argumenta que práticas como mutilação genital feminina (FGM) não podem ser vistas como “moralmente equivalentes a práticas de dieta e modelagem corporal na cultura americana” (Nussbaum, 2000, p. 121). Ela afirma que as diferenças entre a FGM e dietas são tão consideráveis que invalidam tal discussão. As distinções que ela faz se relacionam a questão da escolha, o que ela considera prevalecer no ocidente em relação a dietas, e ao grau de prejuízo à saúde envolvido nas práticas. Ela diz que FGM é “forçada, enquanto dietas em resposta a imagens culturalmente construídas são uma questão de escolha, mesmo que a persuasão seja sedutora” (2000, p. 122). Ela argumenta que a FGM é irreversível enquanto as dietas não são. Ela diz que a FGM é feita em condições perigosas e insalubres, diferente das dietas, e considera que os problemas de saúde ligados à FGM, que podem incluir a morte, são tão mais severos que a comparação é inapropriada. Nussbaum também diz que porque a FGM é usualmente feita em crianças, consentimento não é uma questão. Ela detalha as distinções no grau de instrução feminino nos Estados Unidos e em alguns países da África como base para argumentar que mulheres africanas não têm acesso à escolha e consentimento da mesma forma que mulheres dos Estados Unidos têm. Ela diz que FGM significa “a perda irreversível da capacidade para um tipo de função sexual” que é, presumivelmente, uma perda maior do que a ligada a dietas. Ela argumenta, finalmente, que FGM está “inegavelmente ligada a costumes de dominação masculina” aos quais ela indica que dietas não estão. Ela tem outros argumentos mais gerais para enxergar a FGM como um abuso mais significativo dos direitos das mulheres em comparação a práticas de beleza. Ela diz que feministas nos Estados Unidos têm criticado desproporcionalmente práticas de beleza ocidentais enquanto dão menos atenção à FGM, e que é dever das feministas preocupar-se com o destino de suas irmãs fora da cultura ocidental ao invés de apenas consigo mesmas.
     Seria difícil discordar de Nussbaum que feministas deveriam se preocupar com os direitos humanos de suas irmãs em outros países. Eu argumentaria, entretanto, que as críticas feministas ocidentais às práticas culturais danosas em outras culturas precisam ser fundamentadas em uma profunda crítica a tais práticas em sua própria cultura. Os argumentos de Nussbaum a respeito do motivo pelo qual a dieta não deveria ser comparada a FGM não são convincentes. A dieta ocidental causa danos duradouros à saúde, particularmente quando é levada ao extremo em distúrbios alimentares que podem causar a morte. Um estudo de 2001 reportado em Lancet, por exemplo, conclui que cinco (2%) das pacientes com distúrbios alimentares que foram entrevistadas no começo da pesquisa morreram durante o período seguinte de 5 anos (Bem-Tovim et al., 2001, p. 1254). Similarmente, práticas de cirurgia cosmética podem levar a sérios problemas de saúde, como Elizabeth Haiken documenta no caso de implantes de seios (1997). Labioplastia, assim como FGM, pode levar a dificuldades na funcionalidade sexual. O argumento de Nussbaum sobre o grau de “escolha” das mulheres pode ser visto como revelador de um discurso ocidental de acordo com o qual mulheres no ocidente são tão favorecidas que podem “escolher” e dessa forma quaisquer práticas culturais impostas a elas não são tão severas como as impostas em algumas culturas africanas. Este é um problema fundamental no pensamento feminista liberal de que relações de poder em culturas ocidentais são colocados como simples “pressões” que mulheres têm a educação para rejeitar (Jeffreys, 1997b).
     Algumas feministas liberais individualistas podem encontrar evidência da “escolha” das mulheres mesmo nas situações mais improváveis. Uma delas é a prática da cirurgia de reparação do hímen no ocidente. A cirurgia de reparação do hímen é feita para criar uma virgindade artificial em mulheres de culturas nas quais sangrar é um requisito na noite de núpcias para evitar a vergonha que seria para uma noiva e sua família a perda da “honra”. A penalidade para a perda da honra pode ser uma “execução por honra” na qual a mulher é morta por membros homens da família. Imigrantes no ocidente provenientes de tais culturas podem obter a reparação do hímen pelos mesmos cirurgiões que realizam labioplastia em mulheres influenciadas pela pornografia a considerar seus lábios vaginais feios. Em seu artigo sobre a prática da reparação do hímen na Holanda no século XXI, Sawitri Saharso argumenta que meninas que fazem a cirurgia de reparação do hímen são “agentes morais que podem escolher” (Saharso, 2003, p. 20). Feministas deveriam, ela diz, respeitar “as escolhas de outras mulheres, mesmo que não concordemos com elas. Isso por sua vez significa que disponibilizar a reparação do hímen é um ato de multiculturalismo e bom feminismo” (p. 21). As meninas são “agentes moralmente competentes que fazem uma escolha e são capazes de afirmar suas preferências” (2003, p. 21). A reparação do hímen está atualmente disponível gratuitamente no serviço de saúde da Holanda e Saharso considera isso como “uma medida política culturalmente sensível que reconhece o sofrimento culturalmente informado” (p. 21).
     O conceito de “escolha” que Saharso coloca é tão empobrecido que é difícil conceber o motivo pelo qual qualquer pessoa o chamaria de “escolha”. Por exemplo ela cita como base para seu argumento sobre meninas “escolhendo” a cirurgia de reparação de hímen uma escritora holandesa que diz que pode-se dizer que elas podem escolher porque elas têm outras opções como deixar a comunidade:
     Ela sugere que deixar a comunidade não necessariamente significa tornar-se uma prostituta, pois existem abrigos na Holanda para meninas e mulheres que fugiram. Dessa forma, é somente quando as meninas querem permanecer na família e na comunidade, e presumindo que a família da menina é impiedosa somo ela pressupõe, é que a operação é a única solução disponível.
(citado em Saharso, 2003, p. 19)

     Meninas de comunidades imigrantes provavelmente precisam do apoio de famílias e comunidades mais do que as que pertencem a cultura dominante. Dessa forma, a afirmação casual de que meninas seriam capazes de fazer uma escolha razoável entre o status de banidas no qual elas podem ter que se esconder por uma vida inteira de uma família procurando vingança pela vergonha causada, e fazer uma cirurgia que as possibilitará permanecer, é bastante surpreendente. Essas “escolhas” não são equivalentes em suas implicações e a sugestão de Saharso de que elas deveriam ser consideradas como tal demonstra a lógica estranha que pode resultar da fetichização da escolha na teoria liberal ocidental. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 1] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

PRÁTICAS CULTURAIS DANOSAS
     O conceito da ONU de práticas culturais/tradicionais danosas tem como objetivo identificar práticas que são culturalmente toleradas como formas de violência e discriminação contra mulheres. O conceito é conservado na muito importante e única convenção “de mulheres” – a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulheres (CEDAW; ONU, 1979). O artigo 2(f) da CEDAW determina que partidários da Convenção irão “tomar todas as medidas apropriadas, incluindo legislativas, para modificar ou abolir leis, regulações, costumes e práticas existentes que constituem discriminação contra mulheres”. O CEDAW também instrui os Estados que fazem parte a adotar medidas como:
     Modificar padrões culturais e sociais de conduta masculina e feminina, visando atingir a eliminação de preconceitos e hábitos e todas as outras práticas baseadas na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer um dos sexos ou papéis estereotipados para homens e mulheres
(ONU, 1979, art. 5(a))
     A definição de práticas habituais aqui é suficientemente extensa para incluir práticas de beleza. Práticas de beleza são o principal instrumento através do qual a “diferença” entre os sexos é criada e mantida. Elas criam o papel estereotipado de objetos sexuais e de beleza para mulheres, que têm que gastar muito tempo e dinheiro em maquiagem, penteados, depilação, cremes e loções, moda, botox e cirurgia cosmética. Homens se envolvem na maioria das práticas de beleza descritas neste livro apenas pela satisfação sexual que ganham com a travestilidade masoquista. Não é exigido deles que usem maquiagem para trabalhar, ou saltos altos para agradar a classe sexual dominante. Na verdade, como veremos no Capítulo 3, a travestilidade masculina causa consideráveis problemas para mulheres ao invés de estimular a excitação sexual. A não ser que aceitemos que as mulheres são biologicamente programadas para adotar práticas de beleza, estas precisam ser compreendidas como práticas culturais que são exigidas de mulheres. Todas as práticas exigidas de uma classe sexual ao invés da outra podem ser examinadas por seu papel político em manter a dominação masculina.
     O conceito de práticas culturais/tradicionais danosas foi refinado em alguns documentos da ONU nos anos 90. Uma definição estendida de práticas tradicionais danosas é oferecida em um documento da ONU de 1995:
     Mutilação genital feminina (FGM); alimentação forçada de mulheres; casamentos muito cedo; os vários tabus ou práticas que impedem mulheres de controlar sua própria fertilidade; tabus nutricionais e tradicionais métodos de parto; preferência pelo filho homem e suas implicações no status da menina; infanticídio feminino; gravidez prematura; e dote
(ONU, 1995, pp. 3-4)
     Algumas das práticas descritas no documento têm analogias no ocidente. Alimentação forçada, por exemplo, que prepara meninas para o casamento em culturas nas quais corpos gordos são considerados atraentes por homens, carrega algumas semelhanças com as práticas de beleza ocidentais. É instrutivo compará-la com o que o que aparentemente é seu oposto, passar fome, prática mais provavelmente adotada pelas meninas e mulheres ocidentais para se aproximar do padrão cultural de atratividade. Na cultura ocidental mulheres estão sujeitas a restringir a alimentação por semanas ou meses para caber em seus vestidos de casamento ao invés de aumentar o consumo de alimentos. O documento explica de forma útil como tais práticas foram originadas e isso pode iluminar as origens das práticas de beleza também.
     Práticas culturais danosas são, de acordo com a definição da ONU, prejudiciais à saúde de mulheres e meninas. Os consequentes danos à saúde de práticas como mutilação genital feminina são bem documentados (Dorkenoo. 1994). O dano resultante das práticas de beleza no ocidente pode não ser tão imediatamente claro ou severo. Entretanto, existe considerável evidência do prejuízo à saúde consequente de práticas de cirurgia cosmética como implante nos seios (Haiken, 1997), comum no ocidente. As consequências psicológicas danosas das práticas de beleza não estão documentadas porque tais práticas não são consideradas problemáticas, mas provavelmente são considerável parte na construção da feminilidade subordinada da mulher.
     A concentração nas consequências na saúde de tais práticas surge da tendência do ocidente a querer que o dano seja sujeito a fácil medição. O dano ao status das mulheres como cidadãs iguais é menos fácil de medir mas é um provável resultado de todas as práticas culturais baseadas em subordinação feminina. O trabalho de Ruth Lister sobre cidadania feminina, por exemplo, sugere que o papel de dona de casa e as exigências provenientes dele de que mulheres exerçam várias formas de trabalho não remunerado prejudica severamente o status das mulheres como cidadãs enquanto apoia a cidadania masculina (Lister, 1997). O trabalho extra que mulheres realizam em práticas de beleza e os efeitos dessas práticas nas formas em que elas podem ocupar o espaço público, sentir sobre si mesmas, e intervir na vida pública, podem ser incluídos nesta análise. O trabalho de Nirmal Puwar sobre a experiência de membros femininos no parlamento do Reino Unido mostra que a prática da feminilidade na aparência é vital para elas quando tentam sobreviver naquela cultura extremamente masculina (Puwar, 2004). Uma mulher membro do parlamento que ela entrevistou explica que mulheres são investigadas e marcadas como objetos sexuais e que “a sexualidade das mulheres as acompanha o tempo todo” (Puwar, 2004, p. 76). Os membros do parlamento estão, Puwar argumenta, “sob pressão para reproduzir diferenças de gênero, através de formas materializadas de formas corporais de vestimenta, enfatizando uma forma aceitável de aparência feminina” (p. 176). Um impacto é que elas sofrem constantes comentários, mas é provável que existam efeitos mais adiante, não examinados aqui, de ter que ser tão clara e proeminentemente mulheres, vestindo o estigma desconfortável de sua condição subordinada enquanto procuram ser efetivas no gorverno.
     O documento da ONU diz que práticas culturais danosas são, “consequência do valor colocado em mulheres e meninas pela sociedade. Elas persistem em um ambiente onde mulheres e meninas têm acesso desigual à educação, saúde, bens, e emprego” (ONU, 1995, p.5) Em culturas ocidentais o valor colocado em mulheres e meninas é claramente diferente do colocado em homens humanos. Acesso desigual à educação pode não ser um problema tão grande mas acesso desigual a bens e empregos persiste. A média semanal do salário total individual para mulheres no Reino Unido em 2000/1, por exemplo, era £133, comparado a £271 para homens (Carvel, 2002). O valor mais baixo de mulheres e meninas é demonstrado em violência doméstica e todas as outras práticas de violência contra mulheres e meninas, na existência da pornografia e outras formas da indústria do sexo. Práticas de beleza ocidentais, eu sugiro, surgem desse valor menor. Maquiagem e sapatos de salto alto, labioplastia e implantes nos seios são resultado do valor colocado nas mulheres e meninas ocidentais, no qual os corpos das mulheres são modificados e decorados para mostrar que mulheres são membros da classe subordinada que existe para o prazer masculino.
     Outro critério que o documento da ONU dá para o reconhecimento de práticas culturais/tradicionais danosas é que elas “refletem valores e crenças mantidas por membros da comunidade por períodos que frequentemente abrangem gerações” e que são “para benefício dos homens” (ONU, 1995, p. 3). Práticas de beleza refletem valores e crenças de longa data sobre mulheres, ainda que as práticas as quais mulheres estão sujeitas mudem com o tempo. A exigência de que mulheres alterem e adornem seus corpos pelo bem da “beleza” não muda, por exemplo, ainda que os corsets como instrumento de modelagem da anatomia feminina para ênfase dos seios tenha cedido lugar para implantes de seios (Summers, 2001). A ideia de “beleza” como algo que mulheres devem incorporar para a excitação sexual masculina, seja natural ou artificialmente, está profundamente engendrada na cultura ocidental.
     As práticas de beleza podem razoavelmente ser entendidas como sendo para benefício dos homens. Mesmo que mulheres no ocidente às vezes digam que escolhem se envolver em práticas de beleza para benefício próprio, ou para outras mulheres e não para homens, os homens se beneficiam de várias formas. Eles ganham a vantagem de ter seu status de classe sexual superior demarcado, e a satisfação de ser lembrados de sua superioridade toda vez que olham para uma mulher. Eles também ganham a vantagem de ser sexualmente estimulados por mulheres “lindas”. Essas vantagens podem ser resumidas pela compreensão de que é esperado que mulheres estejam sempre “complementando” e “cumprimentando” homens. Mulheres complementam homens por ser o sexo “oposto” e subordinado. Mulheres cumprimentam homens estando preparadas para fazer o esforço de enfeitar a si mesmas para a excitação sexual masculina. Dessa forma, homens podem se sentir com a masculinidade definida e bajulados pelos esforços das mulheres e, se as mulheres estão usando saltos altos por exemplo, aguentam dor para a satisfação deles. As mulheres que recusam as práticas de beleza não oferecem nem complemento nem cumprimento e sua resistência pode ser profundamente ressentida por membros da classe sexual dominante.
     Práticas culturais danosas “persistem” como o documento da ONU nos diz, “porque não são questionadas e assumem uma aura de moralidade nos olhos de quem as pratica” (ONU, 1995, p. 3). Práticas de beleza no ocidente são certamente raramente questionadas. Elas são entendidas como naturais e inevitáveis, justificadas através da história e da cultura como algo inerente à biologia feminina (Marwick, 1988). A rejeição dessas práticas cria raiva e zombaria, como referências a feministas como incendiárias de sutiã, feias, de pernas peludas, que não conseguem arranjar um homem. Práticas de beleza ocidentais possuem a moralidade da natureza. Mulheres que falham em praticá-las podem ser vistas como “perdidas”, vergonhosas, desnaturadas e uma ameaça ao tecido social.
     A relatora especial da ONU sobre violência contra a mulher, Radhika Coomaraswamy, explica que as tentativas dos Estados de modernizar suas economias frequentemente deixam intactos os abusos dos direitos das mulheres em forma de práticas tradicionais (Coomaraswamy, 1997). No ocidente houve um considerável desenvolvimento do que, na compreensão ocidental, representa economia, tecnologia e democracia “modernas”, e ainda assim as práticas de beleza que são indiscutivelmente um dano considerável a mulheres e meninas prosperam e formam a base de indústrias muito significativas. Ao invés de a economia moderna diminuir de alguma forma as práticas danosas, ela as explora em cosméticos e moda por exemplo, para gerar lucros muito consideráveis. Dessa forma a economia moderna aumenta muito a dificuldade de eliminar práticas danosas. The Economist estimou que a indústria global da beleza em maio de 2003 valia 160 bilhões de dólares (The Economist, 2003).
     Em 2002, Coomaraswamy produziu um novo e longo relatório sobre práticas culturais danosas. De forma geral o relatório segue o discurso ocidental de documentos anteriores, entretanto as práticas de beleza ocidentais têm um parágrafo inteiro dedicado a elas aqui. O relatório diz que “Em muitas sociedades, o desejo pela beleza tem frequentemente afetado mulheres de diversas formas” (Coomaraswamy, 2002, p. 31). Isso enfoca especificamente práticas de beleza no ocidente na forma com que exigem magreza, “No mundo ocidental do século XXI o mito de beleza no qual o tipo físico feminino magro é o único aceito é imposto a mulheres pela mídia por meio de revistas, propaganda e televisão”, e pela propaganda sexista. O que o relatório chama de “cultura de ideais impraticáveis” resulta, segundo ele, em “muitas práticas que causam abusos ao corpo feminino” e separa para mencionar “cirurgia cosmética em toda parte do corpo feminino” que “leva a problemas de saúde e complicações para muitas mulheres”. Essa menção, ainda que apressada, pode ser uma indicação de que a necessidade de incluir algumas práticas de beleza ocidentais entre aquelas que Coomaraswamy descreve como violações aos “direitos humanos das mulheres à integridade do corpo e à expressão, minando valores essenciais de igualdade e dignidade” está sendo reconhecida (2002, p. 3).
     Entretanto, ela inclui apenas práticas não ocidentais na categoria que identifica como mais sérias. Essa é a categoria de “práticas culturais que envolvem ‘dor e sofrimento severos’ para a mulher ou criança, que não respeitam a integridade física do corpo feminino” e “devem receber máximo escrutínio e agitação internacional” (Coomaraswamy, 2002, p. 8). Isso inclui “mutilação genital feminina, assassinato por honra, Sati ou qualquer outra forma de prática cultural que brutaliza o corpo feminino” (p. 8).

     Existem algumas práticas não ocidentais descritas no relatório que podem ser comparadas a práticas muito similares que estão rapidamente se tornando componentes comuns da beleza ocidental. Por exemplo, nos é dito que “As mulheres Tutsi em Ruanda e Burundi seguem a prática de alongamento dos lábios vaginais com o objetivo de permitir que as mulheres tenham maior prazer sexual” (Coomaraswamy, 2002, p. 12). Isso tem algo em comum com a prática da labioplastia no ocidente. Na cirurgia cosmética de labioplastia, cirurgiões cortam partes dos pequenos lábios para “embelezar” as genitálias femininas. Isso não é uma prática que pode ser explicada ou justificada em termos de tradição, porque é de origem recente, mas em grau de mutilação, dor e potenciais complicações se assemelha a mutilação genital feminina e forma um alarmante contraste com o costume Tutsi. No ocidente, na literatura de propaganda de cirurgiões de labioplastia, é dito que lábios longos inibem o prazer sexual em geram vergonha. Coomaraswamy usa a linguagem da dignidade humana para descrever o dano das práticas tradicionais. É dito que tais práticas violam a dignidade feminina (Coomaraswamy, 1997). O conceito de “dignidade” feminina é importante e a ideia de “dignidade” humana é fundamental para a teoria e prática dos direitos humanos. Essa é uma medida útil com a qual comparar práticas de beleza como labioplastia. Apesar de haver analogias no ocidente a muitas das práticas não ocidentais descritas no relatório (Wynter et al., 2002), elas provavelmente são omitidas na literatura da ONU. Isso se deve, eu sugiro, a um discurso ocidental que identifica práticas culturais danosas no ocidente como um reflexo da escolha das mulheres ao invés de ser reforçadas por ameaça de punição ou decreto religioso. 

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

[CAPÍTULO 2, Introdução] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

CAPÍTULO 2
 PRÁTICAS CULTURAIS DANOSAS E CULTURA OCIDENTAL

     Eu argumento que as práticas de beleza na cultura ocidental devem ser entendidas como práticas culturais danosas. Práticas de beleza ocidentais como maquiagem e cirurgia de implante nos seios envolvem diferentes níveis de dano a mulheres. Cirurgia cosmética que remove partes do corpo é mais obviamente similar a mutilação genital feminina do que a maquiagem, por exemplo. Esse capítulo argumenta, entretanto, que um contínuo de práticas de beleza ocidentais, do batom de um lado à cirurgia cosmética invasiva de outro, se encaixam no critério definido por práticas culturais danosas na compreensão das Nações Unidas, apesar de diferirem na extremidade de seus efeitos. O conceito de práticas culturais/tradicionais danosas foi originado pelas preocupações da ONU em identificar e eliminar formas de prejuízo a mulheres e crianças que não se encaixam facilmente na estrutura dos direitos humanos (ONU, 1995). Está ganhando reconhecimento na comunidade internacional de direitos humanos mas apenas no que se refere a práticas como mutilação genital feminina em culturas não ocidentais. Não há, entretanto, reconhecimento de práticas muito similares, como o corte de genitálias para encaixar pessoas em estereótipos de gênero no ocidente, como danosas. Na verdade é provável que a ideia de que o ocidente tem uma “cultura” que produz “práticas” possa parecer estranha. Práticas danosas no ocidente serão mais comumente justificadas como vindas da “escolha” consumista, da “ciência” e “medicina” ou “moda”; isto é, a lei do mercado. Cultura pode ser vista como algo reacionário que existe fora do ocidente. O ocidente tem a ciência e o mercado ao invés disso. Neste capítulo eu argumento que a cultura ocidental da dominância masculina produz sim práticas, incluindo práticas de beleza, que são prejudiciais a mulheres.
     Na última década uma particularmente brutal prática de beleza ocidental, a labioplastia, teve sua popularidade aumentada entre cirurgiões cosméticos. Uma pesquisa na Internet do termo “labioplastia” aciona 2,220 websites, a maioria de cirurgiões cosméticos dos EUA oferecendo o procedimento. Um cirurgião de labioplastia descreve a cirurgia como “um procedimento cirúrgico que irá reduzir e/ou remodelar os pequenos lábios” (LabiaplastySurgeon.com, 2002). Os websites listam a prática rotineiramente entre outras cirurgias oferecidas que cortam o corpo feminino para conformá-lo aos desejos masculinos. Também em países ocidentais, a prática da “redesignação de gênero”, na qual homens e mulheres são castrados, e seios, pênis, úteros são removidos ou construídos, é realizada, muitas vezes, pelos mesmos cirurgiões. Mas essas práticas não são entendidas como claramente danosas e evidência de uma cultura reacionária. A cirurgia de castração transsexual, por exemplo, é representada pela profissão médica que lucra com ela como sendo um tratamento para um distúrbio médico de “disforia de gênero”, ao invés de uma norma cultural segundo a qual os que não se encaixam em uma categoria sexual devem ser cirurgicamente transferidos para a outra (Rottnek, 1999).
     O conceito de práticas culturais danosas é útil para analisar tais práticas no ocidente bem como no não ocidente. Práticas culturais ou tradicionais danosas nos termos da ONU são identificadas como: prejudiciais à saúde de mulheres e meninas; surgidas de diferenças de poder material entre os sexos; em benefício de homens; criando masculinidade e feminilidade estereotipadas, prejudicando as oportunidades de mulheres e meninas; justificadas por tradição. Essa definição se encaixa bem nas práticas de beleza ocidentais como a cirurgia cosmética. O conceito permite que a cultura da dominância masculina na qual mulheres vivem seja colocado em foco e sujeito à crítica ao invés de tido como natural, inevitável ou até mesmo progressivo.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Jovens mulheres estão sendo recrutadas em massa para ser parte de atividade sexual degradante.

Título original: Young porn stars are being recruited in droves to be part of a degrading sex act.
Autora: Emily Purcell
Disponível em: http://goo.gl/mX7zXd
Tradução: Laryssa Azevedo
Como uma estrela pornô experiente, Clayra Beau já fez cenas de sexo violento. Mas nada a preparou para a brutalidade de sua experiência com “abuso facial”.

De acordo com o Urban Dictionary, abuso facial é “o ato de humilhar sexualmente sua parceira abusando e degradando seu rosto durante o sexo oral segurando sua cabeça profundamente em sua genitália, estapeando seu rosto e falando com ela de forma degradante durante o processo”.
E isso é amenizar a verdade.

Ou, como Beau coloca: “Abuso facial é exatamente o que eles dizem no título: Abuso com um ‘facial’ no final.” (E não estamos falando do tipo desintoxicante, anti-idade ou máscara de lama facial. Use sua imaginação)
Clayra Beau postou fotos de ferimentos no olho após a filmagem de abuso facial.
Em seu blog, Beau diz que ela sabia que a filmagem seria “bastante violenta”, mas foi assegurado que ela ficaria bem.

“Uma vez que começamos eu não aguentei nem dois minutos antes de ter que parar. Comecei de joelhos com o talento masculino literalmente enfiando o pau na minha garganta até que eu engasgasse e não pudesse respirar”, disse ela.

É prática comum para mulheres ter uma palavra de segurança – ou ser capaz de dar um tapinha na coxa do homem para parar.

“Não faz sentido ter uma palavra de segurança quando você não consegue falar”, disse Beau. “Eu estava arranhando as pernas dele e estapeando suas coxas e eles não me deixavam levantar”.

Beau disse que, com sangue escorrendo pelo rosto, que “terminaram o abuso com ela”. “Eles me disseram que teriam filmagem o suficiente para vender se tivessem o ‘pop shot’ (quando o homem ejacula na mulher) então eu sentei no chão e finalizei a cena. Por tudo isso eles me pagaram duzentos dólares”.

O sádico estilo de pornografia é seriamente popular, e uma busca no Google leva a páginas e páginas de sites com nomes ofensivos – como Gagging Bitch (vadia engasgando) – dedicadas a exibir os vídeos brutais.
Ava Taylor descobriu muito tarde que estaria fazendo um "boquete forçado". Screenshot:  Hot Girls Wanted
Isso também aparece no documentário do Netflix de 2015 Hot Girls Wanted, que segue as vidas de algumas atrizes pornô adolescentes amadoras com esperanças de crescer na indústria do sexo.

Uma garota diz que seu primeiro trabalho foi abuso facial, que é “mais degradante comparado a outras coisas” e popular em todo o mundo, inclusive na Austrália.

Outra garota, Ava Taylor, diz que ela foi informada no meio e uma filmagem que o sexo oral seria “forçado” e comparou a situação a estupro. “Eu estava assustada. Eu estava aterrorizada. Eu não sabia o que fazer”, Taylor disse. “Eu não sabia se eu poderia dizer não a ele ou o fato de já termos gravado 15 minutos disso, se eu poderia apenas ir embora, então o que?”

A prática misógina é conhecida por usar jovens e inexperientes mulheres, que assinam termos de consentimento sem saber os detalhes do que está por vir. 
Estrelas pornô amadoras em Hot Girls Wanted
Elas são frequentemente abusadas por vários homens, que dizem coisas degradantes como: “É assim que seu paizinho te f*de? Você já foi degradada desse jeito? Você se sente como uma vadia sem valor agora?”

As mulheres aparentemente tem a opção de parar a cena. Mas se elas conseguirem sinalizar seu desejo de parar, e se eles pararem, elas não são pagas.

Os vídeos demandados provocaram protestos, com algumas pessoas alegando que as mulheres estão sendo estupradas, e os estupros documentados e publicados online.

A professora associada Bronwyn Naylor contou à Mamamia que estupro e agressão podem surgir no contexto do abuso facial, dependendo das circunstâncias específicas de cada situação.

Dra Naylor disse que o consentimento (que significa ‘acordo livre’) tem que ser totalmente informado e não existiria onde uma pessoa se submete a ato sexual por força, medo de força ou medo de sofrer danos (o que pode incluir perda de renda).
Chorar e usar sinais para escapar – como dar tapinhas – pode ser evidência de falta de consentimento.
“O consentimento pode ser retirado a qualquer momento. Uma vez que a pessoa não consente mais, o comportamento pode contar como estupro se o agressor perceber que não existe mais consentimento”. Dra Naylor diz.

A expert em lei criminal diz que para um ato ser considerado estupro, tem que ser provado que o agressor não tinha uma crença razoável que a vítima estava consentindo. A vítima usar um sinal para mostrar a ausência de consentimento, ou o agressor saber que ela está se submetendo apenas por medo, pode ser o suficiente para mostrar isso.

“Outros tipos de violência como espancamento podem também ser agressão. A única defesa aqui seria o consentimento dela, e o consentimento ainda deve ser totalmente informado e totalmente voluntário”, disse Dra Naylor.
O dinheiro atrai jovens garotas para o sórdido mundo da pornografia. Screenshot: Hot Girls Wanted
Existem várias petições online pedindo que o site mais conhecido, Facial Abuse (que parece ter sido renomeado para F*da Facial e fornece um estoque que parece infinito desse tipo de vídeo), seja retirado do ar.

Dra Liz Conor, expert em pornografia da Universidade de Monash disse que a indústria pornográfica cruza os limites da atividade sexual aceitável ou conhecida “ao bater em mulheres”, com estudos que mostram que mais de 90% da pornografia é abusiva, degradante e violenta para mulheres.
A atriz pornô aposentada Gina Lynn diz que gravou uma cena de abuso facial uma vez e jamais faria de novo. Imagem via Wikipedia

Dra Conor disse que a indústria quer ser notada como pioneira, exploradora e aventureira sexual “porque na verdade é entediante assistir pessoas f*dendo, geralmente com os valores aterrorizantes de produção”

“Consequentemente, a busca constante não só por prazeres novos, mas por classificar novos prazeres, nomeando-os como marcas para venda, como ‘ass-to-mouth (cu na boca) e ‘turkey slapping’ (surra de pau). Abuso facial apenas continua a tradição.”

Assista Avery Taylor falar sobre sua experiência com abuso facial, o que descreve como “estupro consentido”.

Beau – que estava tremendo e teve problemas para enxergar e engolir devido a seus ferimentos após a filmagem – disse que isso era o mais próximo de estupro que pornografia consensual poderia chegar.

“Abuso facial é sobre machucar mulheres o quanto puderem e saírem impunes disso. Uma das cláusulas nos contratos deles diz que você não pode tomar atitudes contra eles em caso de dano emocional ou psicológico causado durante sua filmagem. Dessa forma eles podem literalmente foder uma menina para sempre e ela não pode fazer nada sobre isso. Isso é o mais próximo de estupro que se pode chegar em pornografia consensual e coloca todas as pornógrafas em perigo.”

Uma das jovens meninas que aparecem no documentário Hot Girls Wanted disse: “Eu estou tentando ser famosa, então você faz o que tem que fazer”.
Ela precisa saber que não tem que fazer isso.

Você acha que abuso facial é pornografia ou estupro?


quinta-feira, 21 de julho de 2016

[CAPÍTULO 1, PARTE 4] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

DIFERENÇA/DEFERÊNCIA SEXUAL

     A cultura ocidental é fundamentada na noção da diferença sexual: a ideia de que existe uma diferença essencial entre homens e mulheres, expressa nos comportamentos de masculinidade e feminilidade e suas práticas concomitantes. Isso é tão dominante e onipresente, deixando pouco espaço para alternativas, que a ideia de que mulheres podem positivamente “escolher” as práticas que expressam essa diferença faz pouco sentido. A cultura ocidental, como quaisquer outras culturas de dominância masculina, exige que a “diferença” seja publicamente demonstrada. Por esse motivo a diferença é considerada como verdade. Esse é o mito mais persistente e difícil de desafiar. A prática dos diferentes comportamentos masculino e feminino por homens e mulheres é baseada na ideia de que existe algo como “diferença sexual”. Teóricas feministas francesas como Monique Wittig (1996) e Colette Guillaumin (1996) argumentam fortemente que essa diferença é política e representa a base da dominação masculina. Diferença sexual é geralmente explicada pela biologia como se existissem claramente dois sexos biologicamente distintos que exibem diferenças biologicamente criadas de comportamento e aparência. Teóricas feministas de várias disciplinas apontaram a esmagadora força com a qual, nos últimos 30 anos, os “papéis sexuais”, agora mais usualmente chamados “gênero”, são culturalmente construídos e essa análise social construcionista mais recentemente foi estendida à ideia do sexo biológico em si (Delphy, 1993). O fenômeno da intersexualidade, no qual características sexuais secundárias, hormônios e/ou estrutura genética pode incorporar elementos de ambos os supostamente distintos sexos biológicos, fortaleceu a ideia de que a noção de dois sexos é política. A ideia de dois sexos resulta da necessidade de uma cultura de dominância masculina ser capaz de identificar membros da classe dominante de homens e da subordinada classe de mulheres ao colocar bebês em uma das duas categorias ao nascer. Os gêneros da dominância masculina e da subordinação feminina são então impostos sobre os que ocupam a categoria apropriada.
     A “diferença” entre homens e mulheres é criada em e pela cultura mas é considerada natural e biológica. A grande dificuldade que tantas mulheres e homens têm em enxergar feminilidade e masculinidade como socialmente construídas ao invés de naturais, atesta a força e a potência da cultura. A teórica feminista francesa Colette Guillaumin explica a dificuldade com essa ideia cultural de que mulheres são “diferentes” (Guillaumin, 1996). Se mulheres são “diferentes” então deve ter algo do qual elas se diferem. Acontece que esse algo são “homens” que não têm outro algo do qual se diferem, eles apenas são. Apenas mulheres são entendidas como diferentes, “Homens não diferem de nada... Nós somos diferentes – é uma característica fundamental...Nós conseguimos a proeza gramatical e lógica de ser diferentes sozinhas. Nossa natureza é a diferença” (Guillaumin, 1996, p. 95). Mulheres são, de fato, entendidas como “diferentes” dos homens de várias formas, “delicadas, bonitas, intuitivas, irracionais, maternais, de corpos não musculares, a quem falta um caráter estabelecido”, como Guillaumin coloca (1996, p. 95). Mas o mais importante é que mulheres são entendidas como diferentes dos homens por ser tanto potencialmente “lindas” quanto por ser interessadas em beleza e entusiastas de dedicar enormes quantidades de tempo, dinheiro dor e estresse emocional para ser “lindas”. Isso é assumido na cultura ocidental como “natural” das mulheres e o mais universal símbolo da diferença das mulheres em relação aos homens.
A ideia da diferença sexual biológica é o maior obstáculo ao reconhecimento de que homens e mulheres na verdade existem em relação um ao outro em posições de dominância e subordinação. Como outra feminista francesa, Monique Wittig, coloca, “A ideologia da diferença sexual funciona como censura em nossa cultura mascarando, com base na natureza, a oposição social entre homens e mulheres” (Wittig, 1996, p. 24). A diferença sexual é criada por um sistema de dominação como em qualquer sistema de dominância masculina. “Os mestres explicam e justificam as divisões estabelecidas como resultado de diferenças naturais” (p. 24). Wittig argumenta que os conceitos “homem” e “mulher” são categorias políticas e seriam abolidos em uma luta de classes entre homens e mulheres se as mulheres tivessem sucesso. Mas mulheres não se envolvem nessa luta de classes. Elas não reconhecem que são dominadas porque as “oposições (diferenças) parecem como dadas, como se já estivessem lá, antes de qualquer pensamento” (1996, p. 25). Wittig cita Marx e Engels quando afirma que a classe dominante de “qualquer época” é “ao mesmo tempo a força intelectual dominante” e as ideias de qualquer tempo são as ideias dessa classe dominante (1996, p. 26) É a dominância da classe política de “homens”, de acordo com Wittig, que ensina às mulheres que “existe, antes de qualquer pensamento, qualquer sociedade, ‘sexos’ (duas categorias dentro das quais indivíduos nascem) com uma diferença constitutiva”, que é tanto metafísica quanto “natural” e adotada no pensamento marxista na forma da divisão sexual do trabalho. Essa ideia “esconde  o fato político da subjugação de um sexo pelo outro” (Wittig, 1996, p. 26).
A categoria sexual na qual humanos são colocados é a base da heterossexualidade compulsória (Rich, 1993) e “funda a sociedade como heterossexual” (Wittig, 1996, p. 27):
     A categoria do sexo é a que dita como “natural” a relação que está na base da (heterossexual) sociedade e através da qual metade da população, mulheres, é “heterossexualizada” (a concepção de mulheres é como a concepção de eunucos, a marcação de escravos, de animais) e submetida a uma economia heterossexual.
(1996, p. 27)
O propósito dessa heterossexualidade compulsória é permitir que homens “se apropriem da reprodução e produção de mulheres, bem como suas pessoas físicas por meio de um contrato chamado contrato de casamento” (p. 27).
A análise de Wittig das exigências de “categoria sexual” para mulheres é útil para entender as práticas de beleza. Ela explica que mulheres são transformadas em sexo.
     A categoria sexual é o produto da sociedade heterossexual que transforma metade da população em seres sexuais. Não importa aonde estejam ou o que façam (incluindo trabalhos no setor público), elas são vistas como (e convertidas em) sexualmente disponíveis para homens, e seus seios, nádegas, trajes, devem ser visíveis. Elas devem vestir sua estrela amarela, seu sorriso constante, dia e noite.
(Wittig, 1996, p. 28)
     Wittig sugere que nós vemos essa disponibilidade forçada a todas as mulheres, casadas ou não, como “um período de serviço sexual forçado, um serviço sexual que podemos comparar ao militar, e que pode variar entre um dia, um ano ou vinte e cinco anos ou mais”. São as práticas de beleza que marcam mulheres como as que preenchem os requerimentos de sua “corvéia” sexual; isto é, o trabalho que os camponeses devem exercer para os donos das terras sem pagamento. As práticas de beleza dão prazer aos homens, permitem sua excitação sexual, no escritório, na rua, no cinema, no quarto. Homens não habitam a categoria sexual que as mulheres habitam. Homens são muito mais do que sexo, “a categoria sexual... está ligada a mulheres, por isso elas não podem ser percebidas fora dela. Apenas elas são sexo, o sexo, e é em sexo que são transformadas em suas mentes, corpos, ações, gestos” (Wittig, 1996, p. 28).
     A ideia de que mulheres são sexo foi bem descrita no trabalho de cientistas homens, os sexólogos do século XX que exerceram importante papel em dar a “categoria de sexo” para mulheres uma base oficial na ciência e na medicina. O importante sexólogo Iwan Bloch, cita em The Sexual Life of Our Time – A vida sexual de nosso tempo (1909) um autor o qual, ele diz, “caracterizou bem a esfera sexual estendida da mulher”
     Mulheres são de fato puro sexo dos joelhos ao pescoço. Nós homens concentramos nossos aparatos em um único espaço, nós extraímos isso, separadamente do resto do corpo, porque vem pronto. Elas são uma superfície ou alvo sexual; nós temos apenas uma flecha sexual.
(citado em Jeffreys, 1985, p. 138)
     A criação da diferença sexual através das práticas de beleza é essencial para dar aos homens a satisfação sexual que eles ganham conforme realizam as tarefas de seu dia  quando reconhecem “mulher” e sentem seus pênis se encherem de sangue. Isso pode soar como um exagero da forma de pensar e se comportar dos homens mas alguns estão preparados para expressar isto claramente. J. C. Flugel em seu Psychology of Clothes Psicologia das Roupas (1930/1950) apresenta ousadamente a razão pela qual se exige que mulheres se vistam de forma diferente dos homens:
     A grande maioria do nós sem dúvida irá... admitir francamente que... não podemos encarar a expectativa de abolir o presente sistema de constante estimulação – um sistema que garante que sejamos alertados mesmo à distância sobre  o sexo de um ser que se aproxima, para que não precisemos perder a oportunidade de experienciar em qualquer grau os incipientes estágios de resposta sexual.
     Parece não haver escapatória da visão de que o propósito fundamental de adotar uma vestimenta distinta para os dois sexos é para estimular o instinto sexual.
(p. 201)

     Emmanuel Reynaud, autor de Holy Virility – Santa Virilidade, oferece uma explicação sobre a diferença na vestimenta que apoia a ideia de que ela serve à satisfação sexual masculina, “Ela deve mostrar as pernas e tornar sua vagina acessível, enquanto um homem não tem que revelar suas panturrilhas para oferecer fácil acesso a seu pênis” (Reynaud, 1983, p; 402).
     Práticas de beleza mostram que mulheres são obedientes, dispostas a fazer seu serviço, e se esforçar nesse serviço. Elas mostram, eu afirmo, que mulheres não são simplesmente “diferentes” mas, mais importante, “deferentes”. A diferença que a mulher deve incorporar é a deferência. A maneira pela qual é exigido que se manifeste diferença/deferência sexual pode variar consideravelmente entre sociedades dominadas por homens, mas não existe evidência de que existam quaisquer sociedades nas quais a diferença/deferência sexual seja irrelevante ou a ordem social da dominância masculina esteja fundada em outra coisa que não essa diferença. Como a dominância masculina teria existência sem um claro sinal de diferença que define quem é a classe dominante e quem não? Em sociedades ocidentais isso é expressado na exigência que mulheres criem “beleza” através de roupas que devem mostrar grandes áreas de seus corpos para a excitação masculina, através de saias (apesar de esta não ter sido uma regra tão universal como era há 20 anos), através de roupas apertadas, através de maquiagem, penteados, depilação, exibição de características sexuais secundárias ou sua criação por cirurgia e através da linguagem corporal “feminina”. Mulheres devem praticar feminilidade para criar a diferença/deferência sexual. Mas a diferença é de poder, e a feminilidade é o comportamento exigido da classe subordinada de mulheres para mostrar sua deferência à classe dominante de homens.


FEMINILIDADE COMO O COMPORTAMENTO DE SUBORDINAÇÃO

     As práticas de beleza nas quais mulheres se envolvem, que homens acham tão excitantes, são as de subordinadas políticas. O romance sadomasoquista da dominância masculina, no qual sexo é construído pela dominância masculina e subordinação feminina (Jeffreys, 1990), requer que alguém faça o papel de menina. A teórica feminista de sexualidade e violência sexual, Catharine MacKinnon, argumenta que os “gêneros” da dominância masculina, masculinidade e feminilidade precisam ser constantemente recriados para servir a sexualidade da dominância masculina; isto é, diferença de poder erotizada (MacKinnon, 1989). Essa compreensão ajuda a explicar a existência e persistência da feminilidade. A sexualidade da dominância masculina requer “fems” (uma parte “feminina”) e mulheres são treinadas e pressionadas a facilitas a excitação masculina.
     Teóricas feministas mostraram que o que é entendido como comportamento “feminino” não é simplesmente construído socialmente, mas politicamente construído, como o comportamento do grupo social subordinado. O trabalho de Nancy Henley sobre a política do corpo é um clássico exemplo dessa abordagem (Henley, 1977). Ela mostra claramente que as formas nas quais os seres humanos são treinados e que se espera que usem seus corpos derivam de seus lugares na hierarquia do poder. Os poderosos expressam seu privilégio de certas formas que são proibidas aos subordinados. Henley mostra que não são apenas homens que reproduzem comportamentos de poder, mas também seres humanos envolvidos em outras formas de hierarquia além de gênero, como empregadores e empregados. Os poderosos ocupam maior espaço. Não apenas empregadores têm escritórios maiores como homens terão mais espaço que mulheres em suas casas e no mundo que é só deles. Eles ocupam mais espaço com seus corpos. Assim, homens podem se alongar em um banco de ônibus ou no sofá. Das mulheres é esperado que mantenham suas pernas e braços grudados em seus corpos e que caibam no espaço que sobrou. Similarmente entrevistados não podem se estatelar enquanto estiverem na posição subordinada em uma entrevista de emprego, enquanto os entrevistadores podem. Homens, Henley mostra, abordam mulheres de uma distância menor do que abordariam homens porque às mulheres é permitido menos espaço ao redor de seus corpos.
     O toque é outra área na qual os poderosos são privilegiados. Eles podem fazer contato físico enquanto os subordinados não podem. Dessa forma, empregadores podem tocar em estagiários mas o comportamento inverso seria um atrevimento. Homens podem e tocam mulheres mas se mulheres tocam em homens isso pode ser interpretado como uma abordagem sexual e esse é um comportamento perigoso. Contato visual também é uma forma de expressar poder. Homens podem encarar mulheres e mulheres não devem encarar de volta e sim educadamente abaixar o olhar. Mas homens podem não conseguir encarar outros homens sem provocar um agressivo “tá olhando o quê?” em resposta. Esses comportamentos são aprendidos tanto por instruções diretas, como mães dizendo a suas filhas para fechas as pernas, quanto por interação social. Mas é provável que na fase adulta eles sejam vistos por quem os pratica como “naturais”. O processo de aprendizagem é esquecido. Os comportamentos de espaço, toque e contato visual exigidos dos subordinados são então entendidos como os comportamentos “naturais” da feminilidade. É sobre a base formada por esses comportamentos que as práticas de beleza são inseridas, e que saltos altos podem ser algo natural para mulheres porém ridículo em homens.
     A psicóloga feminista Dee Graham contribuiu significativamente para o entendimento da feminilidade como o comportamento dos subordinados com seu conceito de “síndrome de Estocolmo social” (Graham, 1994). Em Loving to Survive – Amando para Sobreviver ela faz uma analogia entre feminilidade e o comportamento de reféns em situações de sequestro e ameaça que foi chamado síndrome de Estocolmo. Ela explica que a ideia da síndrome de Estocolmo vem de uma situação com reféns em Estocolmo na qual ficou claro que os reféns, ao invés de reagir com rebeldia contra seus opressores, podiam se conectar com eles. Essa ligação, na qual reféns podem identificar os interesses dos sequestradores como seus próprios, vem da real ameaça a sua sobrevivência que os sequestradores representam. Graham estende esse conceito para cobrir o comportamento das mulheres, feminilidade, como uma reação à vida em uma sociedade de violência masculina na qual elas estão em perigo. Feminilidade representa síndrome de Estocolmo social, “Se um (inescapável) grupo ameaça outro grupo com violência mas também – como grupo – mostra alguma gentileza ao grupo vitimizado, um apego entre os grupos se desenvolverá. Isso é o que nos referimos como Síndrome de Estocolmo Social (ou Cultural)” (Graham, 1994, p. 57).
     Graham afirma inequivocamente que, “masculinidade e feminilidade são códigos para dominação masculina e subordinação feminina” (1994, p. 192). Ela diz que mulheres, como reféns, têm medo, e “usamos qualquer informação disponível para alterar nosso comportamento de modo a tornar a interação com homens mais suave” (p. 160). Uma das coisas que as mulheres fazem é mudar seus corpos para ganhar os homens. Ela lista as práticas de beleza danosas que são consideradas neste livro, como maquiagem, cirurgia cosmética, depilação, sapatos de salto alto e roupas restritivas como exemplos. Ela diz que essas práticas refletem:
(1)   A extensão na qual mulheres buscam se tornar aceitáveis para homens, (2) a extensão na qual mulheres buscam se conectar com homens, e dessa forma (3) a extensão na qual mulheres sentem a necessidade de atenção e aprovação masculina e (4) a extensão na qual mulheres se sentem indignas da afeição e aprovação dos homens assim como somos.
(Graham, 1994, p. 162)
     Graham também argumenta que, “feminilidade é um plano para se dar bem com um inimigo tentando ganhar o inimigo” (1994, p. 187). O termo “feminilidade”, “se refere a traços de personalidade associados a subordinados e a traços de personalidades de indivíduos que adotaram comportamentos que agradem os dominantes” (p. 187)  e “tais comportamentos que a cultura masculina classifica como ‘femininos’ são comportamentos que se esperaria caracterizar qualquer grupo oprimido” (p. 189). Esses comportamentos dos menos poderosos são necessariamente tentativas indiretas de influenciar os poderosos, “como o uso de inteligência, prudência, intuição, habilidade interpessoal, charme, sexualidade, ilusão e evitação”; isto é, comportamentos, exceto talvez inteligência, provavelmente identificáveis como essencialmente femininos.
     Graham oferece uma explicação sobre motivo pelo qual muitas mulheres acreditam que sua “feminilidade” é biológica e inerente e por que “nós acreditamos que escolheríamos usar maquiagem, enrolar nossos cabelos e usar saltos altos se homens não achassem mulheres que fazem isso muito mais atraentes” (1994, p. 197). Mulheres acreditam nisso, ela diz, porque “acreditar em outra coisa” demandaria reconhecer que nosso comportamento é controlado por “variáveis externas”; isto é, o uso da força masculina e sua ameaça. Reconhecer isso significaria que as mulheres teriam que “reconhecer nosso terror” (p. 197). Ela diz que “É assustador para mulheres imaginar não ser femininas”. E conclui examinando que o que assusta a respeito de desistir da feminilidade pode levar à decisão de desistir dela.
     Construcionistas sociais feministas como Henley e Graham entendem a tarefa do feminismo na destruição e eliminação do que temos chamado “papéis sexuais” ou “diferença sexual” e agora é mais comumente denominado “gênero”. Quando masculinidade e feminilidade são entendidas como os comportamentos de dominância e subordinação não faz muito sentido esperar que quaisquer aspectos desses comportamentos sobrevivam à destruição da dominância masculina. Christine Delphy explica que o conceito de androginia como uma maneira de lidar com a diferença de gênero – que é, tanto homens quanto mulheres poderiam combinar os comportamentos que são hoje tão rigidamente descritos como pertencentes a um ou outro – não é realizável. (Delphy, 1993). Os comportamentos de dominação e subordinação não sobreviveriam a um futuro igualitário para ser combinados de nenhuma forma. Pode haver aspectos de tais comportamentos que não estão associados com diferença de poder e que poderiam ser mais igualmente compartilhados, como o comportamento carinhoso, mas todos os comportamentos de deferência e privilégio seriam inimagináveis.

     Eu procurei mostrar o poder da expectativa cultural de que mulheres devem demonstrar feminilidade se envolvendo em práticas de beleza. As forças que exigem esse comportamento incluem uma falta de possibilidades de alternativas, a crença de que a feminilidade e suas práticas são naturais e inevitáveis, educação infantil, bullying na escola, exigências no trabalho, necessidade de aperfeiçoar o corpo odiado incutida pela cultura de dominância masculina e o medo de retaliação masculina. Como Karen Callaghan explica em sua introdução à coleção Ideals of Feminine Beauty – Ideais de Beleza Feminina (1994), o controle social no ocidente contemporâneo não é usualmente imposto aos indivíduos por força bruta mas alcançado através de “manipulação simbólica” que pode incluir coisas como propaganda e revistas femininas e “cria a ilusão de liberdade e escolha” (Callaghan, 1994, p. x.). O fato de que algumas mulheres dizem que sentem prazer com as práticas não é inconsistente com seu papel na subordinação aos homens. Isso poderia talvez ser visto como a capacidade de algumas mulheres de tirar uma virtude de uma necessidade. No próximo capítulo eu argumento que as práticas de beleza ocidentais precisam ser incluídas na definição das Nações Unidas como práticas culturais danosas. Esse conceito é um antídoto útil para o debate da agência versus subordinação que abordei aqui porque é fundado numa compreensão do poder e da imposição cultural de práticas que prejudicam mulheres e crianças. Para práticas que são identificadas como danosas, “escolha” não é defesa.