terça-feira, 4 de outubro de 2016

[CAPÍTULO 2, PARTE 2] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

A CULTURA OCIDENTAL OFERECE “ESCOLHA”?
     Práticas culturais danosas são vistas como existentes em culturas nas quais mulheres não têm escolha. A ideia de que práticas tradicionais danosas “escolhidas” podem ser distintas das forçadas não se encaixa bem na compreensão das Nações Unidas do que constitui tais práticas. A noção de práticas culturais danosas é baseada na ideia de que a cultura pode coagir e que mulheres e meninas não são agentes livres capazes de escolher. Nos anos 90, no ocidente, entretanto, a ideologia do liberalismo ocidental e os sistemas econômicos de livre mercado do capitalismo individual defendidos por ele, foram forças potentes na transformação de críticas políticas que reconhecem desigualdade e opressão como limites à escolha e à oportunidade (ver Jeffreys, 1997b). Essa ideologia é tão abrangente que afetou a discussão de Radhika Coomaraswamy sobre práticas danosas fora do ocidente em seu relatório de 2002. O relatório inclui códigos de vestimenta que impõem roupas que cobrem o corpo de mulheres como a burca como práticas culturais danosas. Elas são danosas porque “restringem o movimento das mulheres e seu direito de expressão” e porque são prejudiciais à saúde, “Tais vestimentas podem causar asma, aumento da pressão sanguínea, problemas na audição ou visão, assaduras na pele, queda de cabelo e um declínio geral na condição mental” (Coomaraswamy, 2002, p. 28). Recentemente outra preocupação com a saúde surgiu. Médicos escreveram em Lancet sobre o aumento da incidência de raquitismo, condição na qual os ossos ficam fragilizados devido a falta de vitamina D, explicando que, no oriente médio, existem “muitas mães com a forma adulta de raquitismo e crianças com raquitismo também” como resultado de mulheres sendo obrigadas a cobrir seus corpos, ficando sem receber luz natural do sol em sua pele. (Lichtarowicz, 2003).
     No entanto, Coomaraswamy comenta, tais códigos de vestimenta só são um problema quando são “impostos sobre as mulheres e se a punição é autorizada para quem não usa a incômoda vestimenta” porque nesse caso “os direitos de escolha e expressão são claramente negados” (2002, p. 29). A noção de escolha que ela emprega não engloba os tipos de pressão para vestir roupas restritivas que é discutido mais tarde neste capítulo, como assédio em locais públicos que só pode ser aliviado dessa forma. Cobrir-se pode reduzir este tipo de atrito mas não é consequentemente um sinal de liberdade como é uma acomodação à opressão. A introdução de Coomaraswamy à noção de “escolha” é preocupante pois dilui um dos aspectos mais úteis da noção de práticas culturais danosas, a irrelevância de tais noções ocidentais onde expectativas e práticas culturais agem como executores.
     Mesmo a bem respeitada filósofa política feminista estadunidense, Martha Nussbaum, usa o argumento da “escolha” para distinguir práticas de beleza ocidentais, as dietas em particular, das de fora do ocidente. Nussbaum argumenta que práticas como mutilação genital feminina (FGM) não podem ser vistas como “moralmente equivalentes a práticas de dieta e modelagem corporal na cultura americana” (Nussbaum, 2000, p. 121). Ela afirma que as diferenças entre a FGM e dietas são tão consideráveis que invalidam tal discussão. As distinções que ela faz se relacionam a questão da escolha, o que ela considera prevalecer no ocidente em relação a dietas, e ao grau de prejuízo à saúde envolvido nas práticas. Ela diz que FGM é “forçada, enquanto dietas em resposta a imagens culturalmente construídas são uma questão de escolha, mesmo que a persuasão seja sedutora” (2000, p. 122). Ela argumenta que a FGM é irreversível enquanto as dietas não são. Ela diz que a FGM é feita em condições perigosas e insalubres, diferente das dietas, e considera que os problemas de saúde ligados à FGM, que podem incluir a morte, são tão mais severos que a comparação é inapropriada. Nussbaum também diz que porque a FGM é usualmente feita em crianças, consentimento não é uma questão. Ela detalha as distinções no grau de instrução feminino nos Estados Unidos e em alguns países da África como base para argumentar que mulheres africanas não têm acesso à escolha e consentimento da mesma forma que mulheres dos Estados Unidos têm. Ela diz que FGM significa “a perda irreversível da capacidade para um tipo de função sexual” que é, presumivelmente, uma perda maior do que a ligada a dietas. Ela argumenta, finalmente, que FGM está “inegavelmente ligada a costumes de dominação masculina” aos quais ela indica que dietas não estão. Ela tem outros argumentos mais gerais para enxergar a FGM como um abuso mais significativo dos direitos das mulheres em comparação a práticas de beleza. Ela diz que feministas nos Estados Unidos têm criticado desproporcionalmente práticas de beleza ocidentais enquanto dão menos atenção à FGM, e que é dever das feministas preocupar-se com o destino de suas irmãs fora da cultura ocidental ao invés de apenas consigo mesmas.
     Seria difícil discordar de Nussbaum que feministas deveriam se preocupar com os direitos humanos de suas irmãs em outros países. Eu argumentaria, entretanto, que as críticas feministas ocidentais às práticas culturais danosas em outras culturas precisam ser fundamentadas em uma profunda crítica a tais práticas em sua própria cultura. Os argumentos de Nussbaum a respeito do motivo pelo qual a dieta não deveria ser comparada a FGM não são convincentes. A dieta ocidental causa danos duradouros à saúde, particularmente quando é levada ao extremo em distúrbios alimentares que podem causar a morte. Um estudo de 2001 reportado em Lancet, por exemplo, conclui que cinco (2%) das pacientes com distúrbios alimentares que foram entrevistadas no começo da pesquisa morreram durante o período seguinte de 5 anos (Bem-Tovim et al., 2001, p. 1254). Similarmente, práticas de cirurgia cosmética podem levar a sérios problemas de saúde, como Elizabeth Haiken documenta no caso de implantes de seios (1997). Labioplastia, assim como FGM, pode levar a dificuldades na funcionalidade sexual. O argumento de Nussbaum sobre o grau de “escolha” das mulheres pode ser visto como revelador de um discurso ocidental de acordo com o qual mulheres no ocidente são tão favorecidas que podem “escolher” e dessa forma quaisquer práticas culturais impostas a elas não são tão severas como as impostas em algumas culturas africanas. Este é um problema fundamental no pensamento feminista liberal de que relações de poder em culturas ocidentais são colocados como simples “pressões” que mulheres têm a educação para rejeitar (Jeffreys, 1997b).
     Algumas feministas liberais individualistas podem encontrar evidência da “escolha” das mulheres mesmo nas situações mais improváveis. Uma delas é a prática da cirurgia de reparação do hímen no ocidente. A cirurgia de reparação do hímen é feita para criar uma virgindade artificial em mulheres de culturas nas quais sangrar é um requisito na noite de núpcias para evitar a vergonha que seria para uma noiva e sua família a perda da “honra”. A penalidade para a perda da honra pode ser uma “execução por honra” na qual a mulher é morta por membros homens da família. Imigrantes no ocidente provenientes de tais culturas podem obter a reparação do hímen pelos mesmos cirurgiões que realizam labioplastia em mulheres influenciadas pela pornografia a considerar seus lábios vaginais feios. Em seu artigo sobre a prática da reparação do hímen na Holanda no século XXI, Sawitri Saharso argumenta que meninas que fazem a cirurgia de reparação do hímen são “agentes morais que podem escolher” (Saharso, 2003, p. 20). Feministas deveriam, ela diz, respeitar “as escolhas de outras mulheres, mesmo que não concordemos com elas. Isso por sua vez significa que disponibilizar a reparação do hímen é um ato de multiculturalismo e bom feminismo” (p. 21). As meninas são “agentes moralmente competentes que fazem uma escolha e são capazes de afirmar suas preferências” (2003, p. 21). A reparação do hímen está atualmente disponível gratuitamente no serviço de saúde da Holanda e Saharso considera isso como “uma medida política culturalmente sensível que reconhece o sofrimento culturalmente informado” (p. 21).
     O conceito de “escolha” que Saharso coloca é tão empobrecido que é difícil conceber o motivo pelo qual qualquer pessoa o chamaria de “escolha”. Por exemplo ela cita como base para seu argumento sobre meninas “escolhendo” a cirurgia de reparação de hímen uma escritora holandesa que diz que pode-se dizer que elas podem escolher porque elas têm outras opções como deixar a comunidade:
     Ela sugere que deixar a comunidade não necessariamente significa tornar-se uma prostituta, pois existem abrigos na Holanda para meninas e mulheres que fugiram. Dessa forma, é somente quando as meninas querem permanecer na família e na comunidade, e presumindo que a família da menina é impiedosa somo ela pressupõe, é que a operação é a única solução disponível.
(citado em Saharso, 2003, p. 19)

     Meninas de comunidades imigrantes provavelmente precisam do apoio de famílias e comunidades mais do que as que pertencem a cultura dominante. Dessa forma, a afirmação casual de que meninas seriam capazes de fazer uma escolha razoável entre o status de banidas no qual elas podem ter que se esconder por uma vida inteira de uma família procurando vingança pela vergonha causada, e fazer uma cirurgia que as possibilitará permanecer, é bastante surpreendente. Essas “escolhas” não são equivalentes em suas implicações e a sugestão de Saharso de que elas deveriam ser consideradas como tal demonstra a lógica estranha que pode resultar da fetichização da escolha na teoria liberal ocidental. 

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