Este texto faz parte do livro Against our Will: Men, Women and Rape, de Susan Brownmiller,
publicado pela primeira vez em 1975.
Tradução livre: Laryssa Azevedo
A psicologia de massas do estupro: uma introdução
Krafft-Ebing, pioneiro nos estudos de distúrbios sexuais,
teve pouco a dizer sobre estupro. Seu famoso Psychopathia Sexualis dá pouca atenção ao ato e a seus praticantes.
Ele acreditava, como informou a seus leitores, que a maioria dos estupradores
eram homens degenerados e imbecis. Com essa generalização, Krafft-Ebing lavou
as mãos sobre toda a questão e virou-se com prazer aos frotteurs e fetichistas que agradavam.
Sigmund Freud, cujos maiores trabalhos seguiram os de
Krafft-Ebing por vinte a quarenta anos, também se calou sobre o assunto do
estupro. Podemos pesquisar seus escritos em vão por uma citação citável, uma
análise, uma percepção. O pai da psicanálise, que inventou o conceito da
primazia do pênis, nunca foi motivado, até onde sabemos, a explorar a
consequência real do pênis como uma arma. O que o mestre ignorou, os discípulos
tenderam a ignorar também. Alfred Adler não menciona estupro, apesar de sua
total consciência da histórica disputa de poder entre homens e mulheres. Jung
refere-se ao estupro apenas de forma obscura, uma referência de relance em
alguma de suas interpretações mitológicas. Helene Deutsch e Karen Horney, cada
uma de uma perspectiva diferente, atingiram o medo feminino do estupro, e a
fantasia feminina, mas como mulheres que não se atreveram a ousar, não
direcionaram o olhar a realidade de homem e mulher.
E os grandes teóricos socialistas Marx e Engels e seus
muitos colegas e discípulos que desenvolveram a teoria da opressão de classe e
colocaram palavras como “exploração” no vocabulário cotidiano, esses, também,
permaneceram estranhamente em silêncio sobre estupro, incapazes de encaixá-lo
em seus constructos econômicos. Entre eles apenas August Bebel tentou alcançar
sua importância histórica, seu papel na própria formulação da classe,
propriedade privada e meios de produção. Em Woman
Under Socialism Bebel usou sua imaginação para especular brevemente sobre
as brigas pré-históricas por terra, gado e força de trabalho em uma análise
marxista aceitável: “Surgiu a necessidade da força de trabalho para cultivar a
terra. Quanto mais numerosa essa força, maior a abundância em produtos e gado.
Esses esforços levaram primeiro ao estupro de mulheres, em seguida a escravidão
de homens conquistados. As mulheres viraram parideiras e objetos de prazer do
conquistador; seus homens viraram escravos.” Ele não fez uma boa abordagem,
tornando estupro de mulheres algo secundário a procura do homem por trabalho,
mas isso foi uma pequena revelação que Engels não atingiu em seu Origin of the Family. Todavia Bebel estava
mais tranquilo pesquisando as remunerações e condições de trabalho das mulheres
em fábricas alemãs, e foi nisso que dedicou suas energias.
Foi o desequilibrado gênio Wilhelm Reich, consumido em raiva
igualmente por Hitler, Marx e Freud, que
brevemente cogitou a visão de uma “ideologia masculina do estupro.” A frase
está no capítulo de abertura de The
Sexual Revolution, implorando por mais interpretações. Mas isso não veio. A
angustiada mente estava em um estágio muito avançado de desordem. Uma análise
política do estupro poderia requerer mais traição a seu próprio imutável gênero
do que Wilhelm Reich poderia ter.
E assim permaneceu para as feministas modernas, livres pelo
menos dos escritos que nos proibiam de olhar para a sexualidade masculina, para
descobrir a verdade e o significado de nossa própria vitimização. Crítico a
nosso estudo é o reconhecimento de que o estupro tem uma história, e por meio
das ferramentas da análise histórica podemos aprender o que precisamos saber
sobre nossa atual condição.
Nenhum zoólogo, até onde eu sei, observou que animais
estupram em seu habitat natural, a selva. Sexo no mundo animal, incluindo nas
espécies com as quais temos relações próximas, os primatas, é mais corretamente
chamado “acasalamento,” e sua atividade cíclica é determinada por sinais
biológicos que a fêmea emite. O acasalamento é iniciado e “controlado,” parece,
pelo ciclo reprodutivo da fêmea. Quando a fêmea da espécie periodicamente entra
no cio, emitindo óbvios sinais físicos, ela está pronta e disposta para a
cópula e o macho fica interessado. Em outros tempos simplesmente não há
interesse, e não há acasalamento.
Jane Goodall, estudando seus chimpanzés selvagens na reserva
de Gombe Stream, notou que os chimpanzés, machos e fêmeas, eram “muito
promíscuos, mas isso não significa que cada fêmea vai aceitar cada macho que a
cortejar.” Ela gravou suas observações de uma fêmea no cio, que mostrava o
inchaço rosado em sua área genital, que todavia demonstrava aversão a um macho
em particular que a procurava. “Apesar de ele tê-la balançado para fora da
árvore onde ela se refugiava, nós nunca o vimos de fato ‘estuprá-la’,” Goodall
escreveu, adicionando, entretanto, “Porém, muito frequentemente ele conseguia
se aproximar através de obstinada persistência.” Outro estudioso do
comportamento animal, Leonard Williams, afirmou categoricamente “O macaco macho
não pode de fato acasalar com a fêmea sem seu convite e disposição para
cooperar. Na sociedade dos macacos não existe estupro, prostituição, ou mesmo
consentimento passivo.”
Zoólogos em sua maioria foram reticentes sobre estupro. Isso
não tem sido, para eles, uma questão científica importante. Mas nós sabemos que
seres humanos são diferentes. Cópula em nossa espécie pode ocorrer 365 dias por
ano; não é controlada pelo ciclo de reprodução feminino. Nós fêmeas humanas não
“ficamos cor de rosa.” A chamada da reprodução e os sinais, tanto visuais
quanto olfativos, são ausentes em nossos procedimentos de acasalamento,
perdidos talvez na aleatoriedade evolucionária. Em seu lugar, como marca de
nossa civilização, nós temos evoluído um complexo sistema de sinais e desejos
psicológicos, e uma complexa estrutura de prazer. Nosso chamado para o sexo ocorre
na cabeça, e o ato não está necessariamente ligado, como em outros animais, ao
padrão de procriação da mãe natureza. Sem uma temporada de acasalamento
biologicamente determinada, um macho humano pode demonstrar interesse sexual em
uma fêmea humana quantas vezes quiser, e seus desejos psicológicos não dependem
de forma alguma de sua prontidão biológica ou receptividade. Consequentemente,
o macho humano pode estuprar.
A capacidade estrutural do homem de estuprar e a
correspondente vulnerabilidade estrutural da mulher é a base da fisiologia de
ambos os sexos como o original ato sexual em si. Não fosse esse acidente
biológico, uma acomodação que requer o encaixe de duas partes separadas, pênis
em vagina, não haveria cópula e nem estupro como conhecemos. Anatomicamente
alguém pode querer melhorar o design da natureza, mas tal especulação não me
parece realista. O sexo humano alcança seu propósito histórico de geração da
espécie e também dispõe alguma intimidade e prazer. Não tenho nenhum conflito
com o procedimento. Mas nós não podemos argumentar com o fato de que em termos
de anatomia humana a possibilidade de intercurso forçado incontestavelmente
existe. Esse único fator pode ser sido suficiente para ter causado a criação da
ideologia masculina do estupro. Quando homens descobriram que poderiam
estuprar, eles o fizeram. Muito depois, sob certas circunstâncias, eles
até vieram a considerar estupro um crime.
No cenário violento habitado por mulheres e homens
primitivos, alguma mulher em algum lugar previu seu direito a própria
integridade física, e consigo imaginar sua luta para preservá-lo. Após o
chocante reconhecimento de que essa particular encarnação de hominídeo cabeludo
de duas pernas não era o Homo sapiens com o qual ela gostaria de livremente
unir as partes, deve ter sido ela, e não algum homem, que pegou a primeira
pedra e arremessou. Como ele deve ter ficado surpreso, que inesperada batalha
deve ter se iniciado. Rápida e determinada, ela deve ter chutado, mordido,
empurrado e corrido, mas ela não
podia retaliar.
A obscura percepção que entrou na consciência de mulheres
pré-históricas deve ter tido uma igual porém oposta reação na mente do agressor
masculino. Se o primeiro estupro foi uma inesperada batalha encontrada na
recusa da primeira mulher, o segundo estupro foi indubitavelmente premeditado.
De fato, uma das formas mais antigas de ligação masculina deve ter sido o
estupro coletivo de uma mulher por um bando de homens. Feito isso, o estupro se
tornou não apenas uma prerrogativa masculina, mas uma arma masculina básica de
força contra a mulher, o principal agente do desejo dele e do medo dela. A
entrada forçada dele no corpo dela, apesar dos protestos físicos e dos
esforços, se tornou o veículo de sua conquista vitoriosa sobre ela, o grande
teste de sua força superior, o triunfo de sua masculinidade.
A descoberta do homem de que sua genitália poderia servir
como uma arma para gerar medo deve estar entre uma das mais importantes
descobertas dos tempos pré-históricos, juntamente com o uso do fogo e do
primeiro machado rudimentar de pedra. Dos tempos pré-históricos até o presente,
eu acredito, o estupro exerceu uma função crítica. Não é nada mais nada menos
que um processo consciente de intimidação pelo qual todo homem mantém toda mulher em um estado de medo.