IMPERIALISMO
CULTURAL OCIDENTAL – EXPORTANDO PRÁTICAS DANOSAS PARA O NÃO OCIDENTE
Mulheres no
Afeganistão supostamente recentemente libertas da regra do Talibã, estão presas
na dualidade patriarcal de virgem/vadia por terem sido apresentadas a apenas
duas escolhas de aparência, cobrir-se com a burca ou usar maquiagem. Práticas
de beleza ocidentais são vistas como tão obviamente naturais, inevitáveis e
boas para mulheres que têm sido mantidas como o melhor para mulheres do
Afeganistão. Após anos de terrível opressão nos quais elas eram permitidas fora
de casa apenas se usassem a burca que cobre o corpo inteiro, viajavam apenas na
companhia de homens, eram privadas de educação e emprego e poderiam apanhar nas
ruas por guardiões homens da integridade islâmica sem direito a reparação,
poder envolver-se em práticas de beleza ocidentais, especialmente para rosto e
cabelo, não parece uma necessidade urgente. Contudo é dessa forma que tais práticas estão
sendo promovidas.
A indústria de
beleza americana avançou em 2002 em consequência da guerra para se infiltrar no
Afeganistão sob o disfarce de um “auxílio” de beleza urgentemente necessitado.
Isso foi representado na mídia ocidental como uma ajuda positiva ao invés de
imperialismo cultural americano e empreendimento capitalista. Foi oferecido a
mulheres o papel de cobrir-se com maquiagem e ser sexualmente objetificada, ao
invés de cobrir-se com a burca para prevenir que fossem vistas como objetos
sexuais por homens. A perspectiva do New
York Times sobre isso é que apesar de duas décadas de guerra “Mulheres
afegãs mantiveram seu desejo de parecer lindas, mas existe uma “lamentável
escassez de esteticistas. Além disso, elas não têm ninguém para ensiná-las e
nenhum lugar onde podem ter acesso a um pente decente, ainda mais à coleção de
géis, cremes, pós, delineadores e cores que transbordam das prateleiras de
qualquer drogaria americana” (Halbfinger, 2002,
p. 1). Em resposta a essa oportunidade de mercado, e à oportunidade de
mostrar suas companhias lidando com um socorro emergencial, a maioral da
indústria de beleza americana logo “correu ao resgate” liderada pela editora da
Vogue. O resultado dessa generosidade
foi que uma escola que ensinaria práticas de beleza estava para abrir em acordo
com o Ministério Afegão de Assuntos Femininos, como se práticas de beleza
fossem de fato uma questão crucial de direitos humanos para mulheres, junto com
educação, segurança e trabalho.
Os fabricantes
de produtos de beleza americanos ofereceram manuais e mercadorias para auxiliar
a empreitada. A editora da Vogue,
Anna Wintour, disse que a indústria da beleza é “incrivelmente filantrópica” e
que a escola de beleza “não apenas ajudaria mulheres do Afeganistão a ser e
sentirem-se melhor mas também as empregaria”. Aparentemente a situação nos 20
salões de beleza que reabriram após a remoção do controle do Talibã constituem
uma crise de saúde porque as condições eram insalubres e perigosas. Como uma
emigrante afegã que viu a situação reportou:
Elas estão usando tesouras enferrujadas, têm um pente barato para o salão inteiro e não o limpam, não há água corrente ou creme de barbear, e existe um problema real com piolhos. Elas usam varas de madeira e elásticos para fazer permanentes. E não há algodão, de modo que a solução de permanente escorre pelo rosto da cliente.
(Halbfinger, 2002, p. 1)
Permanente
capilar poderia ser considerada uma prática cultural danosa por si só dado que
a química envolvida é tóxica independente de escorrer pelo rosto (Erickson,
2002), mas nos interesses do capitalismo transformou-se em uma demanda de
direitos humanos. Simplesmente traduzir manuais educacionais de beleza não era
suficiente no Afeganistão porque muitas mulheres eram analfabetas, então um
curso em vídeo de instruções de maquiagem estava sendo preparado.
Apesar de as
corporações de cosméticos lutarem entre si para fazer doações à escola de
beleza em um almoço da Vogue foi dito
que não estavam competindo por vendas, um executivo disse que “a escola de
beleza não pode ser julgada um sucesso se não criar uma demanda por cosméticos
americanos assim que possível” (Halbfinger, 2002, p. 1). Não foi apenas no
Afeganistão que corporações de cosméticos dos Estados Unidos viram uma
oportunidade de mercado. Eles rapidamente entraram na União Soviética após a
queda do regime comunista para oferecer seus serviços para mulheres antes em
privação, e estão alcançando a China também. Como a historiadora dos negócios
Kathy Peiss coloca, até mesmo nas “Florestas tropicais da Amazônia, mulheres
vendem Avon, Mary Kay e outros produtos de beleza” (Peiss, 2001, p. 20). Mas
Peiss, como muitos dos envolvidos em vender ideais de beleza ocidentais no
Afeganistão, esconde a opressão dessa atividade colonizadora ao enfatizar que ela fornece empregos para mulheres que precisam muito deles. Como ela diz, “como
foi o caso há cem anos nos Estados Unidos, esses ‘micronegócios’ deram a
algumas mulheres um apoio na economia de mercado em desenvolvimento” (Peiss,
2001, p. 20).
COBRINDO
MULHERES NA RELIGIÃO PATRIARCAL
Apesar de a
objetificação sexual requerida das mulheres no ocidente poder ser distinta do
ato de se cobrir exigido por regimes islâmicos, é instrutivo considerar a base
cultural idêntica a partir da qual tanto a cultura ocidental quanto a islâmica
se desenvolveram. Cobrir as cabeças de mulheres é uma prática cultural de
tribos do oriente médio que encontraram caminhos, via religiões monoteístas
originárias daquela região, para outras partes do mundo. Cobrir as cabeças e os
corpos era imposto sobre algumas mulheres cristãs no ocidente até pouco tempo
atrás. Em minha infância em Malta nos anos 1950, onde meu pai foi colocado pelo
exército, eu lembro dos avisos em ônibus que instruíam mulheres a “usar vestido
Marylike”. Ainda era obrigatório que mulheres que entrassem em igrejas em muitas
partes da Europa cobrindo suas cabeças. A religião cristã, como o islã, e a
outra religião patriarcal monoteísta, o judaísmo, tem suas raízes em culturas
patriarcais antigas que existiam no oriente médio. Nessas culturas antigas, era
exigido que mulheres respeitáveis se cobrissem como no código babilônico de Hamurabi.
Gerda Lerner explica em The Creation of
Patriarchy, que o código, que precede as três religiões, exigia que
mulheres que não eram prostitutas se cobrissem para indicar que eram
propriedade de homens individuais (Lerner, 1987). As mulheres prostituídas,
geralmente escravas, não se cobriam para indicar que eram propriedade de homens
em geral.
No início da
cristandade um código similar foi imposto. Dessa forma, na carta de Paulo aos
Coríntios no Novo Testamento ele define a regra. Ele explica que “a cabeça de
todo homem é Cristo; e a cabeça da mulher é o homem; e a cabeça de Cristo é
Deus”. Isso pode ser demonstrado através de cobrir a cabeça desta forma:
Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua própria cabeça. Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu. O varão pois não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do varão. Porque o varão não provém da mulher, mas a mulher do varão. Porque também o varão não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do varão.
(Coríntios, 1957, 11: 3-15, p. 181)
A cobertura da cabeça da mulher poderia mostrar que ela era
propriedade do homem. Outras práticas danosas da cristandade antiga
acompanharam o código de vestimenta. Mulheres não podiam falar na igreja, mas
podiam perguntar a seus maridos sobre qualquer coisa que não entendessem quando
chegassem em casa e eram obrigadas a “submeter-se a seus próprios maridos, como
a Deus” (Efésios, 1957, 5: 22, p. 200).
Um ramo da religião cristã hoje vai além de simplesmente
cobrir mulheres. Mulheres estão de fato excluídas de todo o Monte Athos na
Grécia, coberto por monastérios ortodoxos, para que os monges estejam
protegidos de ter que vê-las. Em 2002 essa prática cristã antiga recebeu apoio
influente pela visita, divulgada na mídia, do Príncipe Charles a um monastério
na montanha (Smith, 2004). A montanha tem excluído mulheres desde o século XI e
com o status de uma república teocrática independente pode impor penalidades
legais a quem desafiar o banimento. Charles visitou o lugar diversas vezes
desde morte de sua ex esposa, Diana, e é
dito que ganha ótimo consolo de seu refúgio, um lugar onde as leituras no
refeitório “são frequentemente baseadas no (...) mal causado pelas mulheres com a
queda de Eva” (Smith, 2004, p. 3). A contínua existência dessa zona de exclusão
apesar de tentativas da União Europeia de revogar o banimento é um lembrete dos
valores misóginos que estão na base do cristianismo patriarcal.
O QUE CONSTITUI UMA PRÁTICA CULTURAL DANOSA?
Eu sugeri neste capítulo que tanto as culturas ocidentais
influenciadas pelo cristianismo quanto as influenciadas pelo islã reforçam
práticas culturais danosas sobre mulheres. Apenas uma determinação para ignorar
as origens políticas, funções e consequências das práticas de beleza ocidentais
permitiriam a crença de que a cultura ocidental é claramente superior nas
liberdades dadas a mulheres em relação à aparência. Considerando que todas as
três culturas religiosas patriarcais originadas no antigo oriente médio
começaram forçando mulheres a se cobrir, isso mudou no ocidente para a
aparentemente muito diferente prescrição para mulheres exercerem seu papel
sexual em espaços públicos. Em algumas áreas do oriente médio e da Ásia onde
cobrir-se foi uma regra desafiada ou está morrendo existe uma reforço renovado
da regra. O resultado final é uma aparentemente divergência cada vez maior
entre as regras de aparência para mulheres no oriente e no ocidente. Ambos os
conjuntos de regras de aparência, entretanto, requerem que mulheres devam ser “diferentes/deferentes”,
e ambos exigem que elas sirvam as necessidades sexuais dos homens, seja
fornecendo excitação sexual ou escondendo os corpos femininos para que homens
não fiquem excitados. Em ambos os casos, é exigido que mulheres satisfaçam as
necessidades masculinas em espaços públicos e não tenham as liberdades que
homens possuem.
O conceito de práticas culturais danosas em relação à
aparência, portanto, não é restrito a culturas não ocidentais. Todas as
práticas culturais ocidentais consideradas neste livro, de maquiagem a
labioplastia, se encaixam no critério para identificação de práticas culturais
danosas. Eu argumento que elas criam papéis estereotipados para os sexos, são
originadas da subordinação da mulher e são para benefício dos homens e
justificadas por tradição. É certamente possível argumentar, como demonstro no
capítulo 6 sobre maquiagem, que mesmo práticas que aparentam ter menos efeito
na saúde de mulheres e meninas, como o uso de batom, podem ser prejudiciais.
Apesar de práticas de beleza ocidentais serem raramente forçadas por violência
física, elas são todas culturalmente reforçadas. Falhar em usar maquiagem e em
depilar as pernas e axilas pode não ser “suicídio social” em culturas ocidentais
mas irá, como sugiro no capítulo sobre maquiagem, afetar a habilidade de
mulheres em conseguir e manter emprego e nível de influência social. Era
exigido que as mulheres do parlamento britânico que mencionei usassem roupas
femininas e que mostrassem as pernas se quisessem ter qualquer legitimidade na
legislatura e era improvável que sobrevivessem se permitissem que os pelos das
axilas aparecessem nas blusas ou que pelos das pernas aparecessem em suas
coxas.
Entretanto estou consciente de que o grau de dano inflingido por práticas como cirurgia cosmética e uso de batom não é igual. A implicação de reconhecer
práticas de beleza ocidentais como práticas culturais danosas é que os governos
irão, como requerido pela Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra Mulheres, precisar alterar as atitudes sociais que os
baseiam. Em caso de algumas práticas de cirurgia cosmética as consequências são
suficientemente severas e a regulação tão facilmente efetuada por penalidades
legais sobre praticantes médicos que poderiam ser terminadas através de meios
legais. O uso de batom e a depilação, entretanto, não devem ser consideradas
práticas isentas de ser consideradas danosas e requerem medidas, apesar de
medidas legais não serem apropriadas. Elas marcam mulheres como subordinadas e
claramente demonstram os papéis estereotipados dos sexos mesmo não sendo tão
severas em seu impacto na saúde das mulheres. O papel dos governos
comprometidos com o fim de tais práticas, ou mesmo o simples alívio do impacto
da exigência culturais que devem cumprir, deve portanto ser de combater a criação
de diferença sexual, em ideias e atitudes, práticas de negócios, que inscrevem
essa noção na fundação da cultura ocidental.
Em capítulos posteriores eu
examino as práticas de maquiagem, salto alto e cirurgia cosmética em mais
detalhes para mostrar como são reforçadas e quais são suas consequências para a
saúde das mulheres e acesso a prerrogativas comuns que homens em sociedades
ocidentais provavelmente nem valorizam: aparecer no espaço público com a cara
lavada, correr, ter tempo de lazer livre da necessidade de manutenção do corpo.
Leitores poderão tirar suas conclusões sobre incluir essas práticas na compreensão
da ONU. No próximo capítulo eu amplio as definições de práticas de beleza
femininas na cultura ocidental através da travestilidade/transsexualismo. A
performance de práticas de beleza por homens mostra que esse comportamento não
é biologicamente conectado a mulheres. Mas faz mais do que isso. Como eu
procuro demonstrar aqui, praticantes masculinos obtém prazer sexual de tais
práticas porque elas demonstram status subordinados. Isso apoia a compreensão
de práticas de beleza como comportamentos de deferência de um grupo
subordinado.