PRÁTICAS
CULTURAIS DANOSAS
O
conceito da ONU de práticas culturais/tradicionais danosas tem como objetivo
identificar práticas que são culturalmente toleradas como formas de violência e
discriminação contra mulheres. O conceito é conservado na muito importante e
única convenção “de mulheres” – a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra Mulheres (CEDAW; ONU, 1979). O artigo 2(f) da CEDAW
determina que partidários da Convenção irão “tomar todas as medidas
apropriadas, incluindo legislativas, para modificar ou abolir leis, regulações,
costumes e práticas existentes que constituem discriminação contra mulheres”. O
CEDAW também instrui os Estados que fazem parte a adotar medidas como:
Modificar padrões culturais e sociais de conduta masculina e feminina, visando atingir a eliminação de preconceitos e hábitos e todas as outras práticas baseadas na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer um dos sexos ou papéis estereotipados para homens e mulheres(ONU, 1979, art. 5(a))
A
definição de práticas habituais aqui é suficientemente extensa para incluir práticas
de beleza. Práticas de beleza são o principal instrumento através do qual a
“diferença” entre os sexos é criada e mantida. Elas criam o papel estereotipado
de objetos sexuais e de beleza para mulheres, que têm que gastar muito tempo e
dinheiro em maquiagem, penteados, depilação, cremes e loções, moda, botox e
cirurgia cosmética. Homens se envolvem na maioria das práticas de beleza
descritas neste livro apenas pela satisfação sexual que ganham com a
travestilidade masoquista. Não é exigido deles que usem maquiagem para
trabalhar, ou saltos altos para agradar a classe sexual dominante. Na verdade,
como veremos no Capítulo 3, a travestilidade masculina causa consideráveis
problemas para mulheres ao invés de estimular a excitação sexual. A não ser que
aceitemos que as mulheres são biologicamente programadas para adotar práticas
de beleza, estas precisam ser compreendidas como práticas culturais que são
exigidas de mulheres. Todas as práticas exigidas de uma classe sexual ao invés
da outra podem ser examinadas por seu papel político em manter a dominação
masculina.
O
conceito de práticas culturais/tradicionais danosas foi refinado em alguns
documentos da ONU nos anos 90. Uma definição estendida de práticas tradicionais
danosas é oferecida em um documento da ONU de 1995:
Mutilação genital feminina (FGM); alimentação forçada de mulheres; casamentos muito cedo; os vários tabus ou práticas que impedem mulheres de controlar sua própria fertilidade; tabus nutricionais e tradicionais métodos de parto; preferência pelo filho homem e suas implicações no status da menina; infanticídio feminino; gravidez prematura; e dote(ONU, 1995, pp. 3-4)
Algumas
das práticas descritas no documento têm analogias no ocidente. Alimentação
forçada, por exemplo, que prepara meninas para o casamento em culturas nas
quais corpos gordos são considerados atraentes por homens, carrega algumas
semelhanças com as práticas de beleza ocidentais. É instrutivo compará-la com o
que o que aparentemente é seu oposto, passar fome, prática mais provavelmente
adotada pelas meninas e mulheres ocidentais para se aproximar do padrão
cultural de atratividade. Na cultura ocidental mulheres estão sujeitas a
restringir a alimentação por semanas ou meses para caber em seus vestidos de
casamento ao invés de aumentar o consumo de alimentos. O documento explica de
forma útil como tais práticas foram originadas e isso pode iluminar as origens
das práticas de beleza também.
Práticas
culturais danosas são, de acordo com a definição da ONU, prejudiciais à saúde
de mulheres e meninas. Os consequentes danos à saúde de práticas como mutilação
genital feminina são bem documentados (Dorkenoo. 1994). O dano resultante das
práticas de beleza no ocidente pode não ser tão imediatamente claro ou severo.
Entretanto, existe considerável evidência do prejuízo à saúde consequente de
práticas de cirurgia cosmética como implante nos seios (Haiken, 1997), comum no
ocidente. As consequências psicológicas danosas das práticas de beleza não
estão documentadas porque tais práticas não são consideradas problemáticas, mas
provavelmente são considerável parte na construção da feminilidade subordinada
da mulher.
A
concentração nas consequências na saúde de tais práticas surge da tendência do
ocidente a querer que o dano seja sujeito a fácil medição. O dano ao status das mulheres como cidadãs iguais
é menos fácil de medir mas é um provável resultado de todas as práticas
culturais baseadas em subordinação feminina. O trabalho de Ruth Lister sobre
cidadania feminina, por exemplo, sugere que o papel de dona de casa e as
exigências provenientes dele de que mulheres exerçam várias formas de trabalho
não remunerado prejudica severamente o status
das mulheres como cidadãs enquanto apoia a cidadania masculina (Lister, 1997).
O trabalho extra que mulheres realizam em práticas de beleza e os efeitos
dessas práticas nas formas em que elas podem ocupar o espaço público, sentir
sobre si mesmas, e intervir na vida pública, podem ser incluídos nesta análise.
O trabalho de Nirmal Puwar sobre a experiência de membros femininos no
parlamento do Reino Unido mostra que a prática da feminilidade na aparência é
vital para elas quando tentam sobreviver naquela cultura extremamente masculina
(Puwar, 2004). Uma mulher membro do parlamento que ela entrevistou explica que
mulheres são investigadas e marcadas como objetos sexuais e que “a sexualidade
das mulheres as acompanha o tempo todo” (Puwar, 2004, p. 76). Os membros do
parlamento estão, Puwar argumenta, “sob pressão para reproduzir diferenças de
gênero, através de formas materializadas de formas corporais de vestimenta,
enfatizando uma forma aceitável de aparência feminina” (p. 176). Um impacto é
que elas sofrem constantes comentários, mas é provável que existam efeitos mais
adiante, não examinados aqui, de ter que ser tão clara e proeminentemente
mulheres, vestindo o estigma desconfortável de sua condição subordinada
enquanto procuram ser efetivas no gorverno.
O
documento da ONU diz que práticas culturais danosas são, “consequência do valor
colocado em mulheres e meninas pela sociedade. Elas persistem em um ambiente
onde mulheres e meninas têm acesso desigual à educação, saúde, bens, e emprego”
(ONU, 1995, p.5) Em culturas ocidentais o valor colocado em mulheres e meninas
é claramente diferente do colocado em homens humanos. Acesso desigual à
educação pode não ser um problema tão grande mas acesso desigual a bens e
empregos persiste. A média semanal do salário total individual para mulheres no
Reino Unido em 2000/1, por exemplo, era £133, comparado a £271 para homens
(Carvel, 2002). O valor mais baixo de mulheres e meninas é demonstrado em
violência doméstica e todas as outras práticas de violência contra mulheres e
meninas, na existência da pornografia e outras formas da indústria do sexo.
Práticas de beleza ocidentais, eu sugiro, surgem desse valor menor. Maquiagem e
sapatos de salto alto, labioplastia e implantes nos seios são resultado do
valor colocado nas mulheres e meninas ocidentais, no qual os corpos das
mulheres são modificados e decorados para mostrar que mulheres são membros da
classe subordinada que existe para o prazer masculino.
Outro
critério que o documento da ONU dá para o reconhecimento de práticas
culturais/tradicionais danosas é que elas “refletem valores e crenças mantidas
por membros da comunidade por períodos que frequentemente abrangem gerações” e
que são “para benefício dos homens” (ONU, 1995, p. 3). Práticas de beleza
refletem valores e crenças de longa data sobre mulheres, ainda que as práticas
as quais mulheres estão sujeitas mudem com o tempo. A exigência de que mulheres
alterem e adornem seus corpos pelo bem da “beleza” não muda, por exemplo, ainda
que os corsets como instrumento de
modelagem da anatomia feminina para ênfase dos seios tenha cedido lugar para
implantes de seios (Summers, 2001). A ideia de “beleza” como algo que mulheres
devem incorporar para a excitação sexual masculina, seja natural ou
artificialmente, está profundamente engendrada na cultura ocidental.
As
práticas de beleza podem razoavelmente ser entendidas como sendo para benefício
dos homens. Mesmo que mulheres no ocidente às vezes digam que escolhem se
envolver em práticas de beleza para benefício próprio, ou para outras mulheres
e não para homens, os homens se beneficiam de várias formas. Eles ganham a
vantagem de ter seu status de classe
sexual superior demarcado, e a satisfação de ser lembrados de sua superioridade
toda vez que olham para uma mulher. Eles também ganham a vantagem de ser
sexualmente estimulados por mulheres “lindas”. Essas vantagens podem ser
resumidas pela compreensão de que é esperado que mulheres estejam sempre
“complementando” e “cumprimentando” homens. Mulheres complementam homens por
ser o sexo “oposto” e subordinado. Mulheres cumprimentam homens estando
preparadas para fazer o esforço de enfeitar a si mesmas para a excitação sexual
masculina. Dessa forma, homens podem se sentir com a masculinidade definida e
bajulados pelos esforços das mulheres e, se as mulheres estão usando saltos
altos por exemplo, aguentam dor para a satisfação deles. As mulheres que recusam
as práticas de beleza não oferecem nem complemento nem cumprimento e sua
resistência pode ser profundamente ressentida por membros da classe sexual
dominante.
Práticas
culturais danosas “persistem” como o documento da ONU nos diz, “porque não são
questionadas e assumem uma aura de moralidade nos olhos de quem as pratica”
(ONU, 1995, p. 3). Práticas de beleza no ocidente são certamente raramente
questionadas. Elas são entendidas como naturais e inevitáveis, justificadas
através da história e da cultura como algo inerente à biologia feminina
(Marwick, 1988). A rejeição dessas práticas cria raiva e zombaria, como
referências a feministas como incendiárias de sutiã, feias, de pernas peludas,
que não conseguem arranjar um homem. Práticas de beleza ocidentais possuem a
moralidade da natureza. Mulheres que falham em praticá-las podem ser vistas
como “perdidas”, vergonhosas, desnaturadas e uma ameaça ao tecido social.
A
relatora especial da ONU sobre violência contra a mulher, Radhika Coomaraswamy,
explica que as tentativas dos Estados de modernizar suas economias
frequentemente deixam intactos os abusos dos direitos das mulheres em forma de
práticas tradicionais (Coomaraswamy, 1997). No ocidente houve um considerável
desenvolvimento do que, na compreensão ocidental, representa economia,
tecnologia e democracia “modernas”, e ainda assim as práticas de beleza que são
indiscutivelmente um dano considerável a mulheres e meninas prosperam e formam
a base de indústrias muito significativas. Ao invés de a economia moderna
diminuir de alguma forma as práticas danosas, ela as explora em cosméticos e
moda por exemplo, para gerar lucros muito consideráveis. Dessa forma a economia
moderna aumenta muito a dificuldade de eliminar práticas danosas. The Economist estimou que a indústria
global da beleza em maio de 2003 valia 160 bilhões de dólares (The Economist, 2003).
Em
2002, Coomaraswamy produziu um novo e longo relatório sobre práticas culturais
danosas. De forma geral o relatório segue o discurso ocidental de documentos
anteriores, entretanto as práticas de beleza ocidentais têm um parágrafo
inteiro dedicado a elas aqui. O relatório diz que “Em muitas sociedades, o
desejo pela beleza tem frequentemente afetado mulheres de diversas formas”
(Coomaraswamy, 2002, p. 31). Isso enfoca especificamente práticas de beleza no
ocidente na forma com que exigem magreza, “No mundo ocidental do século XXI o
mito de beleza no qual o tipo físico feminino magro é o único aceito é imposto
a mulheres pela mídia por meio de revistas, propaganda e televisão”, e pela
propaganda sexista. O que o relatório chama de “cultura de ideais impraticáveis”
resulta, segundo ele, em “muitas práticas que causam abusos ao corpo feminino”
e separa para mencionar “cirurgia cosmética em toda parte do corpo feminino”
que “leva a problemas de saúde e complicações para muitas mulheres”. Essa
menção, ainda que apressada, pode ser uma indicação de que a necessidade de
incluir algumas práticas de beleza ocidentais entre aquelas que Coomaraswamy
descreve como violações aos “direitos humanos das mulheres à integridade do
corpo e à expressão, minando valores essenciais de igualdade e dignidade” está
sendo reconhecida (2002, p. 3).
Entretanto,
ela inclui apenas práticas não ocidentais na categoria que identifica como mais
sérias. Essa é a categoria de “práticas culturais que envolvem ‘dor e sofrimento
severos’ para a mulher ou criança, que não respeitam a integridade física do
corpo feminino” e “devem receber máximo escrutínio e agitação internacional”
(Coomaraswamy, 2002, p. 8). Isso inclui “mutilação genital feminina,
assassinato por honra, Sati ou qualquer outra forma de prática cultural que
brutaliza o corpo feminino” (p. 8).
Existem
algumas práticas não ocidentais descritas no relatório que podem ser comparadas
a práticas muito similares que estão rapidamente se tornando componentes comuns
da beleza ocidental. Por exemplo, nos é dito que “As mulheres Tutsi em Ruanda e
Burundi seguem a prática de alongamento dos lábios vaginais com o objetivo de permitir
que as mulheres tenham maior prazer sexual” (Coomaraswamy, 2002, p. 12). Isso tem
algo em comum com a prática da labioplastia no ocidente. Na cirurgia cosmética
de labioplastia, cirurgiões cortam partes dos pequenos lábios para “embelezar”
as genitálias femininas. Isso não é uma prática que pode ser explicada ou
justificada em termos de tradição, porque é de origem recente, mas em grau de
mutilação, dor e potenciais complicações se assemelha a mutilação genital
feminina e forma um alarmante contraste com o costume Tutsi. No ocidente, na
literatura de propaganda de cirurgiões de labioplastia, é dito que lábios
longos inibem o prazer sexual em geram vergonha. Coomaraswamy usa a linguagem
da dignidade humana para descrever o dano das práticas tradicionais. É dito que
tais práticas violam a dignidade feminina (Coomaraswamy, 1997). O conceito de “dignidade”
feminina é importante e a ideia de “dignidade” humana é fundamental para a
teoria e prática dos direitos humanos. Essa é uma medida útil com a qual
comparar práticas de beleza como labioplastia. Apesar de haver analogias no
ocidente a muitas das práticas não ocidentais descritas no relatório (Wynter et al., 2002), elas provavelmente são
omitidas na literatura da ONU. Isso se deve, eu sugiro, a um discurso ocidental
que identifica práticas culturais danosas no ocidente como um reflexo da
escolha das mulheres ao invés de ser reforçadas por ameaça de punição ou
decreto religioso.